Segunda-feira, 9 de Junho de 2008
Morrer de Amor
Junho 09, 2008

"Conta-me mais..."

"Não ouviste nada do que te disse...", respondes-me tu.
(penso: "ouvi, ouvi tudo, ouvi até para além do que disseste")
Acendes mais um cigarro para disfarçar o desconforto que o meu olhar te provoca. Espreitas por cima dos óculos escuros que nunca largas e sorris como uma menina.
"Não olhes assim para mim", pedes.
Pego-te na mão e retiro-lhe o isqueiro que apertas com força:
"Porquê? Gosto de olhar para ti..."
A tua mão foge da minha, corada.
"Pfff!... " e fazes uma careta para me contradizer.
Sorrio: "Não posso gostar de olhar?"
Levantas a cabeça em ar de desafio:
"Podes. Podes tudo o que quiseres. Mas não me convences."
Encosto-me para trás na cadeira:
"Não te quero convencer. Apenas disse o que penso. É assim tão mau?"
Olhas para a mesa do lado, fingindo-te distraída: "Depois vais dizer que me queres."
Não consigo conter uma gargalhada
(não consigo tirar os olhos de ti):
"Vou? Não ia... mas estava a pensar nisso."
O meu riso relaxa-te. Olhas-me outra vez e o teu sorriso é sincero: "Esses olhares..."
Estendes-me a mão por cima da mesa: "Desculpa, às vezes é difícil não generalizar."
Seguro a tua mão entre as minhas. Os teus dedos são compridos com unhas longas, cortadas rente, sem qualquer artifício. Detenho-me num pequeno calo no teu dedo médio: "Porque não o tiras?"
Sorris ainda mais: "O meu calo de estimação? Está a desaparecer sozinho. Cada vez escrevo menos à mão" – esticas os dedos (são vaidosas as tuas mãos) – "Tenho-o desde criança. Recorda-me sempre as sebentas que enchi de histórias..."
Observo-te a palma da mão: "As histórias que contas... Porque é que nunca falas de ti?"
Ris-te (começo a entender o som do teu riso):
"Gosto de contar histórias. Mas cuidado, não acredites em todos os pormenores. Nunca as conto da mesma forma: depende sempre de quem as ouve"
(penso: "hábil! fugiste à pergunta...")
Repito: "Porque é que não me falas de ti?"
Tens os olhos escondidos pelas lentes escuras mas a tua mão denuncia-te:
"De mim? Porque não há nada para dizer. As histórias são muito mais interessantes."
Entrelaço os meus dedos nos teus (percebo que é assim que quebro a tua vontade porque a tua mão, que não é pequena, parece frágil nos meus dedos):
"Deixa-me ser eu a julgar. Fala-me de ti. Diz-me quem és."
Debruças-te sobre a mesa e retiras os óculos escuros: "Que queres saber de mim?"
Imito-te. Debruço-me sobre a mesa e vejo-me reflectido nos teus olhos: "Tudo..."
Mesmo mergulhado nos teus olhos consigo ver o movimento imperceptível da tua boca, aquele teu morder de lábio que eu conheço tão bem, quando tens algo para dizer mas achas que não o deves fazer. De repente tenho a sensação que não devia ter insistido. Vou-me arrepender de te ter perguntado porque tu vais dizer-me o que eu não quero ouvir. E tu em silêncio, fixas no meu o teu olhar, que já não suporto mas a que não consigo fugir.
"Eu conto-te tudo sim..." – ergues o copo – "ainda há vinho?" E eu sei que foi a desculpa que encontraste para largar a minha mão.
Sirvo-te um pouco de vinho e levas o copo aos lábios, sem desviar o olhar.
Depois sorris: "Tens a certeza que queres saber tudo?"
Tenho vontade de te dizer que não, que cales as palavras que eu um dia pensei que fosses esquecer, que eu julgava esquecidas durante todas as histórias que me contaste ao jantar, que percebo que afinal estão aqui entre nós, que nos vão separar, que já nos separaram. Continuas a sorrir mas o teu sorriso já não é de gozo, é dor escondida, disfarçada de alegria. Não te quero ouvir mas oiço os meus lábios dizerem o contrário: "Sim, quero!"
Contas-me então a última história que te ouvirei. A continuação de uma história que eu conheço. Uma história onde sou eu o personagem principal, onde fui príncipe encantado e acabei representando um papel que não me destinaste, que não quiseste, o papel de vilão. Uma história que descubro que me dói porque não a imaginaste, onde contrariamente ao que costumas fazer, não exageras, não fantasias, um relato exacto de tudo o que se passou, de tudo o que eu não vi, não entendi, não pensei. O lado da história que eu preferi ignorar, inconscientemente é certo, mas não menos inocente por isso. Leio-te a mágoa nos dedos que pegam em mais um cigarro, nos lábios que se tornam secos em contraste com os teus olhos que brilham sim, já não de riso mas de uma espécie de pérolas tristes que as memórias te trazem, que noutra vida eu teria visto correrem livremente pela tua cara mas que hoje se mantêm contidas, como se prisioneiras desse sorriso que não te abandona, que é uma máscara colada num rosto que nunca vi tão lívido, desprovido de sangue e de calor.
Sinto que suspiras cada palavra, é este o alívio que procuras há anos, que finalmente chega, ainda que tarde, porque é demasiado tarde, sei agora que é tarde demais. E cada palavra, recitada docemente como se a história não fosse tua, entra no meu peito rasgando-o, expondo-o, expondo-me, deixando-me sem reacção, apenas uma vontade imensa de te abraçar, de te pedir perdão de uma culpa que não me atribuis.
Toco-te a face, quase sem pensar. Sinto-te fria. Reparo nas olheiras, na pele seca, nos olhos baços. Estremeço e tu aconchegas-me a mão na tua face.
"Não era esta a história que querias ouvir, pois não?" Perguntas-me.
Engulo em seco, não consigo responder. E tu sorris, sorris sempre.
Deslizas a minha mão para a tua boca e depositas um beijo nos meus dedos.
Depois levantas-te, pegas na mala, no casaco e debruças-te sobre o meu ouvido:
“Lembras-te, meu querido, de não acreditares que o Amor mata ?” – sussurras –
“Pois olha bem para mim... eu sou a prova de que se pode morrer de Amor!”
E afastaste-te sem olhar para trás.
 

Maria Helena



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Sexta-feira, 23 de Maio de 2008
Na margem da rebelião
Maio 23, 2008
No século das rebeliões, relembramos a dos estudantes. A mais generosa...
O fumo do tabaco constrói a barricada nebulosa, os odores do absinto e demais licores espirituosos viciavam a atmosfera do café Les Deux Magots próximo do Quartier Latin. Aí os estudantes conversam sobre a deflagração dos seus acontecimentos convertidos em notícias do mundo.
Num recanto, Sartre rabisca um panfleto. Filósofo a sério! Claro sempre comprometido com a causa. Encapotado na gabardina da suspeita, aparece Michel Foucault, em entusiasmo e euforia com a rebelião estudantil. Sartre, sem desviar os olhos estrábicos, indica-lhe uma cadeira, arruma as notas e conversam com cordialidade. Só faltava esta cerejinha no topo do bolo! Os inimigos na filosofia do sujeito como amigos na luta da coisa pública. É bonito de ver.
De fora, os jovens observam embevecidos o encontro dos ídolos dos seus ideais, ali respirando o mesmo ar saturado.
Um dos líderes estudantis escreve no papel de mesa o plano para o dia seguinte. A fórmula da nova humanidade num toalhete manchado de café…
No grupo, quase à margem, um casal saboreia em deleite, beijos copiosos, e mãos indiscretas em formas fogosas, ignorando por ora a estratégia da rebelião.
Tumultuoso mês, Maio de 68.
Vindo do nada, Cohn-Bendit, carismático, provoca a agitação geral, ao transportar ainda o espírito do alvoroço das ruas:
- Camaradas, a luta está ganha! Paris está em ebulição. Há greves e barricadas por toda a parte.
- Os panfletos e os pasquins distribuídos em cada rua… – confirma outro.
- Nenhuma parede escapou aos grafittis – continua Bendit – Próximo de La Défense, da autoria dos anarquistas, li bons veículos para a reflexão: “Não percas a vida a ganhá-la” ou “Intelectuais não queiram ser os cães de guarda do poder capitalista”.
- A liberdade começa na consciência – atacou outro – falámos com Sartre, está ao nosso lado, pretende reunir-se connosco.
- Trataremos isso depois, de imediato planeemos o remedeio de alguns excessos – volta-se Bendit para o enamorado:
- Por aqui Hugo? Depois dos acontecimentos com os carros da polícia, deves retirar-te… durante algum tempo.
- Sossega Cohn, a operação foi limpa, mas se achas bem, retiro-me, isso é óptimo, pois ando ocupado...
- Não quero meter-me na tua vida, mas deves definir-te: queres envolver-te no nosso movimento ou lambuzares-te com a rapariga? E quem é ela?
- É a Nicole! Conheci-a hoje à entrada da Sorbonne, depois da R. G. E., veio felicitar-me pelo discurso. E não perdi a ocasião. Há que pôr em prática a revolução sexual – não é camaradas?
- E ela é de confiança?
- Descansa Cohn, é das nossas… se estão de acordo vou para a sombra, como tenho medo do escuro, levo-a comigo, aproveito e mostro-lhe a minha biblioteca.
- Tudo bem, retirem-se durante uns dias! E divirtam-se.
No café continua a conspiração… na rua a sedução…
De braço dado, com o desafio, passeiam junto ao Sena, onde as águas reflectem a iluminura da cidade nocturna. Ouvem o tumulto em eco distante. Em contraste, sob a ponte de St Michel, casalinhos amassam-se em regalos íntimos. Uma sirene da polícia inquieta o passeio idílico. Apressam o passo. Cruzam a avenida junto aos alfarrabistas e voltam à segurança do Quartier Latin.
Sucedem jovens em bando com bandeiras vermelhas e pretas, procurando o centro das movimentações, onde estoiram os acontecimentos. Em cascata: riem, cantam, gritam slogans. A palavra invade as ruas. É o modo do verbo se converter em acção política, prescindindo da mera retórica anémica. Possuem uma cota de poder e não abdicam dela.
Tumultuoso mês, Maio de 68.
O indivíduo concreto ganha estatuto universal desempenhando o protagonismo histórico: “Apenas é proibido proibir!”. E, deste modo, começa a ser mais fácil ser-se jovem.
Transportam bornais com pedras. Certamente não pretendem edificar nenhuma calçada, nem outra Notre Dame. E há os que aparecem nos braços dos companheiros, com escoriações e cabeças partidas, como resquício do calor da peleja campal. Agitação do mar de gente ondula na retaguarda da batalha.
Cada qual na sua luta…
As nossas personagens sentem-se em segurança nesta buliçosa parte da cidade. Alcançam, enfim, à residência estudantil, onde Hugo tem um modesto quarto, mobilado com estante, cadeira, secretária e cama. O único luxo: um pequeno gira-discos, no qual toca Bob Dylan, Blowin’in the Wind, como uma lufada profética de ar fresco: How many roads must a man walk down/ Before you call him a man? … The answer is my friend, is blowing in the windSentem a lufada da resposta soprada no vento. A vibrante mensagem arrasta-os enlaçados até à janela invadida com os rumores da rebelião. Lá fora a luta. Na barricada há resistência à carga e aos canhões de água da polícia.
Tumultuoso mês, Maio de 68.
Hugo fecha repentinamente a janela… Nicole, surpreendida, denuncia a contradição do amigo: adula os acontecimentos, mas fecha a janela à vida pública, ou à dilacerante Sirene da polícia?
- Não vais com os outros apedrejar a polícia?
- Não entendes nada, Nicole, devo resguardar-me, pois já cumpri o dever. Sou um operacional que deu a cara. Posto isso, não posso ser visto de momento.
- És um sonhador. Mas se isso te aproxima de mim, que se lixe a greve e a luta…
- Não se lixa nada, miúda! Devemos lutar contra o sistema corrupto e a sociedade podre. Toma o exemplo da aliança operária e estudantil dos últimos dias. A liberdade é o máximo, menina. Sabes o que é trazer-te à residência sem o porteiro a coscuvilhar? Pensa bem nisso!
- Se pretendes combater os tigres de papel da burguesia, qual a razão de me trazer para aqui, em enleio romântico?
- Estou-me nas tintas para o romance, o amor e a família. Quero comer-te e ponto final. A transparência acima de tudo, não é isso!?
- És um bruto. Se não significo nada para ti, vou-me embora.
- Claro que me dás pica. A noite vai fazer de ti uma rapariga feliz. Deixa-te de sentimentalismos fora de época, devemos ser práticos. Não quero falsas ideias burguesas, com o amor cor-de-rosa à mistura. Estás a perceber? Isto não é uma foto novela! Ouviste bem?!
- Mas se és sincero, diz tudo o que se passou contigo. Se disseres à tua Nicole, alivias a consciência e tens direito a brinde…
- Isso sim, miúda, isso é falar…
- Contas já, ou é para o dia de São Nunca à tarde?
- Calma menina, as barricadas de Paris e de Pavia não se fizeram num só dia. Aí vai a história. Mas espera…
- Qual é a novidade agora?
- Fazemos um jogo, para dar mais pica! Em cada revelação que eu faça, tu tiras uma peça de roupa.
- Não é necessário tanta fantasia.
- É pegar ou lagar, a escolha é tua, o proveito dos dois.
- Pronto, está bem!
- Como percebeste as regras do jogo, revelo o início do enigma: passou-se ontem, junto ao Panteão. Podes tira a blusa!
- Posso retirar primeiro o chapéu?
- Não te atrevas, deixa estar o chapéu, tenho um fetiche danado por chapéus…
- OK! mantém a calma…
- Nessa operação demos cabo dos cornos à polícia… Estás à espera de quê para tirar a saia!?
- E as botas?! Primeiro são as botas!
- Chavala, gosto de ver uma miúda bem montada no par de botas.
- Caramba, não reconheço este raio de jogo! Pensava que podia escolher.
- Nicole, como diz o meu psicanalista, o Lacan, nós não pensamos, somos pensados, neste caso pela sintaxe do desejo. Tenho de te ensinar tudo?
- Aldrabão! Queres dizer o teu desejo. E eu, não conto?
- Está já a chatear-me a molécula! Assim ficas complexa para burro, aqui para o gosto do selvagem! Aprende a inocência do prazer e cala essa boca reaccionária.
- E tu deixa-te de tretas e conta a história.
- Queres acção? Fui eu, de facto, que atirei o primeiro cocktail molotov contra os carros da polícia.
- Não precisas de dizer mais, o resto li no jornal: um polícia ferido com queimaduras graves, não foi isso? – Interpelou ela.
- És mesmo uma cabra danada!
- Não é necessário ofenderes-me…
- Violaste as regras do jogo, por antecipação. Como castigo tiras duas peças de roupa: o saiote e a camisa.
- Posso optar, e tirar antes o cinto?
- Quero-te de chapéu, sapatos e cinto?! Isto vai ser à minha maneira!
- Cada vez parece mais esquisito o teu jogo…
- Usamos um carrinho de bebé para bloquear numa passadeira os carros da polícia, que iam reforçar as forças da repressão. E agora solta o soutien!
Depois dos seios firmes de Nicole coreografarem espetados no ar um bailado de excitação, deixando Hugo de língua de palmo e meio, é melhor correr a cortina do pudor sobre a libido libertada no dossel…
Pois, muito tumultuoso foi de facto aquele mês de Maio de 1968.
 

Carlos Amaral



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Terça-feira, 6 de Maio de 2008
O Sol e a Lua
Maio 06, 2008

O Sol escondeu-se atrás das nuvens. Estava envergonhado. Abraçado pelas nuvens brancas, recolhia-se numa vergonha glaciar, que lhe gelava a alma. Estava apaixonado. A Lua, de cara lavada, olhos fundos e expressão nostálgica, tinha trocado as voltas ao Sol, que preferia ficar a dormir de dia para de noite a encontrar. 

Os humanos ficaram desorientados. Os dias passaram a ser noites, (porque o Sol estava a dormir) e as noites pintavam o céu de uma cor violeta, a cor que possibilitava o encontro amoroso.
A vida na Terra tornou-se desconhecida. Já ninguém dormia horas certas, trocavam-se os sonos como quem troca de namorado aos cinco anos. As empresas e as fábricas ameaçavam falência, reinava a indisciplina entre os empregados. As escolas fecharam, os pais punham as crianças a dormir de dia. As flores não desabrochavam, as marés incertas impossibilitavam a pesca no mar e os galos já não despertavam as aldeias a horas certas. Os animais recolheram-se em grutas, o trânsito automobilístico, os transportes, os aviões pararam.
Os governos e altas instâncias militares mundiais reuniram-se. Era preciso restaurar a ordem necessária à sobrevivência da espécie humana. O presidente da Terra resolveu enviar um foguetão a jacto, comandado por dois bravos pilotos japoneses rumo ao Sol. Atentado suicida ou não, o facto é que o lançamento foi um êxito. Ao chegarem perto da superfície solar, emitiram um vídeo de vários países a pedirem ao Sol que pensasse no destino da humanidade.
Recolhido nos seus pensamentos enamorados, o Sol acordou sobressaltado com a presença dos dois intrusos e entristeceu-se com tal mensagem. Tentou ignorar. Ultimamente tinha-se tornado demasiado egoísta, fechava os olhos às consequências dos seus actos, preocupava-se apenas em fugir para os olhos da sua paixão lunar. Gostava particularmente de a ver cheia, cheia de si, redonda em todo o seu esplendor.
A Lua, mais consciente, vivia um amor mais tímido, permanentemente assaltado pela nostalgia de que o primeiro beijo trouxesse consigo agarrado o espectro de um último.
Passaram-se dias. O apelo humano não deixava o Sol dormir descansado. Desde que o foguetão humano desaparecera da sua órbita, tremia com o sofrimento humano. Sendo um astro rei, estava a deixar o seu reino abandonado. À noite conversou com a Lua e confessou-se. Ela chorou uma lágrima metálica, abraçou-o indiferente ao seu calor. Rodopiaram  toda a noite no plano astrológico do céu e trocaram a jura de um amor eterno, perante os olhares curiosos das estrelas.
No final pensaram a solução. Combinaram encontrar-se sempre que houvesse um eclipse, da Lua ou do Sol, encontros rápidos e fortuitos, mas que permitiriam uma vivência eterna dos seus encontros. Na Terra a vida recomeçou de novo.
 

Inês Maria 



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Segunda-feira, 21 de Abril de 2008
Uma questão de fé
Abril 21, 2008

A partir de uma ideia de Seymour

 
O telemóvel agitava-se numa vibração nervosa e estridente em cima da mesa-de-cabeceira, antes de começar a soar uma música em notas roufenhas. Sentada na cama, com o tronco envolvido até pouco acima do peito pelo lençol entalado entre os dois braços nus que despontavam do tecido branco, M suspirou e olhou impaciente para o aparelho enquanto dava uma baforada lenta e prolongada no cigarro.
«Não atendes? – perguntou-lhe uma voz masculina». M fez um ar aborrecido e olhou para as imagens em movimento na televisão situada no móvel aos pés da cama. «Não – respondeu sem encarar o homem a seu lado – Não me apetece». Ele permaneceu indiferente. Costas apoiadas na almofada, peito descoberto, perna esquerda dobrada em arco por fora do lençol. Fumava compassadamente imprimindo ao cigarro um movimento pendular entre a boca e o cinzeiro depositado na perna por cima do lençol. «Ao menos podias escolher outra música – soltou desinteressadamente sem despregar os olhos da televisão».
- Porquê? Não gostas?
Ele prolongou o silêncio antes da resposta.
- Não é isso. Não gosto do som.
- Mas quê? Não gostas desta música?
- A música é-me indiferente. Irrita-me esse som.
O telemóvel apitou, acendendo-se a luz do visor no anúncio a uma nova mensagem. M espreitou na direcção do aparelho. Com um ar maçado, inclinou-se sobre a mesa-de-cabeceira, segurando o lençol sobre o peito com a mão esquerda e arrastando-o consigo. O homem percebeu o deslizamento do cinzeiro e agarrou-o antes de cair. «Hei! Cuidado! – protestou com vigor – Vê o que fazes…»
Ela ignorou-o no retorno à posição inicial com as costas coladas na almofada. «Ias fazendo cair isto tudo… – reclamava ainda – Se não fosse eu». Com o telemóvel levantado à altura do rosto, ela lançou-lhe um desinteressado olhar de relance, retomando a atenção ao aparelho. Leu: < Tem uma nova mensagem >. Conduziu-se à “Caixa de Entrada” e escolheu a opção “Ler”.
< Liga precisamos falar>.
M deixou cair a mão sobre a cama, junto à perna, e suspirou. Manteve-se estática por instantes, olhando em redor as paredes nuas de cor clara, e pensou que o quarto tinha falta de alguma cor e identidade. Talvez uns quadros ficassem bem. Distraidamente, puxou um cigarro de dentro do maço e pediu-lhe lume. O homem continuou sem despregar as pupilas da televisão. Num movimento desatento, acendeu-lhe o isqueiro em frente da cara. Ela inclinou-se para a chama, ateando o cigarro. Virou-se para ele e observou-lhe atentamente o peito peludo e os braços nus. Permanecia inerte, com o corpo descaído sobre o lado esquerdo e mantinha a perna de fora do lençol. A televisão projectava grupos de jovens de cores vivas e movimentos ritmados acompanhados de música pop.
«Importas-te de baixar o som da televisão? – questionou reticente – Preciso de fazer um telefonema.» Ele não lhe respondeu. Conduziu a mão ao telecomando e pressionou uma tecla. M escutou o som a ficar cada vez mais distante enquanto observava no ecrã a linha de rectângulos verdes em desaparecimento, ao lado de um triângulo da mesma cor. «Obrigado – disse, ao mesmo tempo que dava uma passa». Levantou-se da cama e dirigiu-se para um canto do quarto próximo da janela. Olhou para fora e franziu a testa perante a chuva oblíqua que o vento atirava contra as vidraças.
Seleccionou um número da lista telefónica e pressionou o botão de chamada. Com o telemóvel colado na orelha escutou o sinal, até ouvir uma voz do outro lado.
- Sim… Sou eu. O que é que se passa?
- Sim? O que é que achas? Claro que não pude. Não posso estar sempre ao lado do telemóvel à espera que telefones.
- Não sei se sabes, estou a trabalhar. Achas que não tenho nada para fazer?
- Sê razoável… Porta-te como um adulto.
- Diz-me o que é que se passa, que eu tenho de voltar lá para dentro. Estou numa reunião.
Aproximou-se da cama e fez-lhe sinal a pedir o cinzeiro. Ele passou-lho para a mão e ergueu-se mudo da cama. Ficou a ver-lhe o corpo nu rumar em passos sólidos para a casa de banho. «Não… Já te disse. Hoje não posso. Não sei a que horas saio». Ela deixou-se ficar. Girou sobre o joelho apoiado na borda da cama e acabou por se sentar.
- Não sei. Já te disse que não sei!
- Não posso ser sempre eu a fazer tudo. Não posso continuar assim! Não posso!
- Não sei… Já disse! Talvez por volta das sete e meia, oito… Depende das horas a que acabe a reunião. Depois, ainda tenho de tratar de uns documentos... Por isso, não sei…
Cobriu o bocal do telemóvel para esconder os sons que vinham da casa de banho. Quando ele reapareceu no quarto, fez-lhe sinais inquietos para fechar a porta. «Está bem… Já sei… Tens de passar por lá, no máximo às seis e meia».
Ele sentou-se ao lado dela, precipitando-lhe a saída. Ergueu-se de imediato, como se a cama fosse demasiado pequena para os dois, e ele acompanhou-lhe os movimentos do corpo nu em direcção à janela.
- Tá. Já sei. Não te esqueças.
- Tá. Até logo.
Deixou cair o braço ao longo do corpo nu, mal desligou. «Pfffffff – soprou longamente – Estou tão farta disto!» Desabafou, enquanto lançava a mão esquerda de encontro à cabeça, como se lhe doesse fortemente. Ele continuava a fitá-la. Acompanhou-lhe os passos até junto da mesa-de-cabeceira, onde despejou o telemóvel. «Preciso de um cigarro! Preciso mesmo de um cigarro. Desesperadamente… – deitou para trás a cabeça, prolongando os queixumes».
Lançou-se com os joelhos sobre a cama. «Arranja-me um cigarro! Depressa…» Os olhos dele prenderam-se nas curvas do corpo dela. Num gesto automático, procurou o maço ao lado da cama e puxou de dois cigarros e o isqueiro. Guardou um na mão e colocou o outro entre os lábios dela. Puxou do isqueiro e acendeu ambos. Ela deu uma baforada longa como se carecesse disso para sobreviver. «Estava mesmo a precisar disto.»
- Era o teu marido?
- O quê?
- Se era o teu marido?
- O que é que achas?
O homem não disse mais nada. Empunhou o comando na direcção do televisor, dando vida aos rectângulos verdes que logo recomeçaram a aparecer no ecrã. A música voltou a ouvir-se enquanto os jovens se agitavam. M não os escutava. Fumava ritmadamente, dando passas sucessivas sem interrupção. Suspirou longamente. «Há momentos em que não sei o que fazer – soltou – Estou tão cansada...» E aspirou o fumo com ansiedade.
Ele mirou-a de relance, de lado, sem mover a cabeça. «Se fosse comigo não te portavas assim.»
- O quê?
- Se fosse comigo não te portavas assim.
- Não chateies.
- A sério… Podes ter a certeza...
- Cala-te! Estás a enervar-me.
- Podes ter a certeza...
- Olha lá! Que moral é que tu tens para me estar a chatear? Estás aqui na cama comigo...
- Eu pelo menos não sou casado... – tinha uma expressão de gozo estampada no rosto.
Sentiu-se irritada. «Cala-te! Não me chateies!»
Viu-o rir-se e apagar o cigarro no cinzeiro sobre a mesa-de-cabeceira. Sentiu-se ainda mais irritada. «Vai-te foder!»
Ele voltou-se brusco para ela. Agarrou-lhe os pulsos com força. Ela foi incapaz de reagir. Sentiu-se doer. Ele torceu-a, obrigando-a a tombar e prendeu-lhe os dois braços de encontro à cama. Mordeu-lhe o pescoço. Sentia-lhe as curvas do corpo. A suavidade da pele. Sentia-lhe o perfume intenso.
«Sinto-me estúpida.» M estava caída de bruços na cama, rosto enterrado na almofada e as palavras soaram distantes, abafadas pelo tecido.
- O quê?
- Sinto-me estúpida…
- Vai tomar banho… Isso passa.
Ele fumava.
- Há momentos em que me sinto tão sozinha…
Olhou-a de relance e viu a massa de cabelos espalhados pela amofada. «Estás a desculpar-te por estar aqui comigo?»
- Não. Não me estou a desculpar de nada. Não preciso disso. Não preciso de desculpas. Estou a falar do que sinto…
- Tens um filho, um marido… Até tens um amante… Não sei do que te queixas...
M ergueu-se bruscamente sobre o cotovelo esquerdo. «Ah! Ah! Ah! – soltou irónica – Não gozes…»
- Não estou a gozar... – levou o cigarro à boca – Estava a falar muito a sério.
- Não acreditas que chego a casa e sinto-me só?
- Acredito...
- Apesar de tudo... Até mesmo apesar do meu filho... Tu sabes como eu gosto do meu filho!
- Às vezes não parece...
Atirou-lhe uma almofada irritada. «Cala-te! Não me chateies!» Ergueu-se da cama em direcção à casa de banho.
Ele gritou. «Não precisas de um homem!»
Recebeu de volta um grito dela. «O quê?» E viu-a reaparecer nua na porta da casa de banho.
- Estou a dizer que não precisas de um marido. Acho que nem mesmo precisas de um filho. Precisas de um Deus.
«O quê? O que é que estás para aí a dizer?» Voltou-se para dentro sem esperar a resposta, deixando-o ficar ainda sobre a cama, a fumar compassadamente e a ver televisão. Gritou mais uma vez. «Estava a dizer que não é uma questão de companhia. É uma questão de fé. A solidão faz parte da dimensão humana. Não a contrarias por estares com mais pessoas, mas sim por encontrares sentido...» Escutou-lhe a voz distante e abafada. «Não oiço nada!» Na televisão, continuava a sucessão de vídeoclips, a que assistiu impávido, acompanhado por cigarros.
Ela não demorou a regressar, enrolada numa toalha branca que logo deixou cair sobre a carpete. «O que é que estavas a dizer?»
- Nada...
- Pareceu-me ouvir qualquer coisa sobre as pessoas e solidão... e mais não sei quê...
- Não era nada...
Ficou a observá-la a vestir-se apressadamente. «Já é tão tarde!»
- Sempre gostei de ver mulheres a vestirem-se.
- Ai é? Que bom para ti...
- Sim... Mas deixa-me dizer-te que a tua pressa não te torna das mais interessantes...
- Obrigado! Eis o elogio que e estava a precisar antes de sair daqui.
- Não foi por mal...
M compôs as longas meias, puxando-as por debaixo da saia, e regressou para a frente do espelho da casa de banho, para retocar o batom. «Bem, tenho de ir... Estou super-atrasada...»
- Olha! Estou sem dinheiro...
Irritada, ela puxou a carteira de dentro da mala, abriu-a e atirou três notas para cima de cama.
À saída, fez a porta bater com força por detrás dela.
O ar frio de um fim de tarde de Novembro encontrou-a já com um comprido casaco de Inverno em cima do passeio molhado. Um frio cortante queimava-lhe a cara. Sentiu-se intimidada pela escuridão da noite. À distância, abriu o carro com o comando automático. Sentou-se e ligou o aquecimento. Estava gelada.
Ligou o motor depois de uma pausa prolongada e conduziu-se devagar por alamedas e ruas escuras e discretas. Os minutos passavam. Mas já estava a ficar habituada à temperatura tépida do interior do veículo.
Devolveu-se ao frio à porta de casa, depois de ter usado o batom. Compôs a roupa e vestiu o casaco comprido. Guiou os passos em direcção a casa. Girou duas vezes a chave na fechadura antes de a porta se abrir. Achou estranho que estivesse trancada. Pousou as chaves e a mala no móvel do hall e pendurou o casaco no cabide da entrada. «Querido! Já cheguei.» O aviso prolongou-se sem resposta no silêncio das paredes. Prosseguiu devagar até à luz acesa da sala. A televisão estava apagada. Percorreu as várias divisões sem encontrar eco dos seus avisos. Até que rumou ao seu próprio quarto. Abriu a porta e acendeu a luz distraidamente. Era impossível não reparar. Em cima da cama estava um balão verde cheio de ar. Sentou-se na beira do colchão e debruçou-se lentamente para ele, puxando-o até ela. Ficou assim. Sentada quieta a olhar para um ponto indefinido da parede, com o balão na mãos e apertado contra o peito.
 
J.P. Limão

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Segunda-feira, 7 de Abril de 2008
Funesta aparição
Abril 07, 2008

“... as nossas maiores tragédias passam-se na nossa ideia de nós.”

Bernardo Soares, Livro do Desassossego
 
Não interessa quem sou, como me chamo, que idade tenho, nem a minha profissão. Apenas que esta história se passou comigo, no dia vinte e sete de Dezembro de dois mil e sete.
Tinha decidido tirar férias na semana que antecedia o Ano Novo para espairecer da monotonia e tédio quotidianos e repensar o futuro pela enésima vez. Após ponderar as alternativas geográficas (não eram muitas, devido à minha precária condição financeira), optei pela casa de veraneio, no litoral algarvio, de um tio paterno com quem mantenho saudáveis afinidades.
No fatídico dia, acordei perto da uma da tarde. O clima convidava a sair de casa, resplendia um belo dia de Inverno. O sol radiava e a brisa, com benigna disposição, era tão suave que o seu sopro acariciava as faces daqueles por quem passava. Fui até à praia. Sentei-me na areia e saboreei, com repartido deleite, aquele idílio natural: inalei o odor fresco e salgado da maresia; contemplei o lento vogar de farrapos de nuvens e o voo sinuoso das gaivotas no céu; escutei a marulhosa música das pequenas ondas que, com a subida da maré, se espraiavam cada vez mais perto dos meus pés. Acabei por empreender um sonho em que viajava num veleiro, sulcando as águas calmas do Mediterrâneo, deixando atrás de mim o alvo rasto das flores da espuma. Aportava em ziguezague nas terras do Sul da Europa e do Norte de África, como se fugidiamente lhes roubasse um beijo, para por nenhuma me enamorar. 
Perdia-me eu naquelas amplas divagações marítimas, quando alguém se sentou na penumbra da minha sombra. Embrenhado como estava no sonho, decidido a gozá-lo, não dei relevância ao facto de uma pessoa escolher um local tão perto de mim para estar, com a praia quase vazia. Passado algum tempo, porém, a sua proximidade tornou-se-me incómoda, interrompendo em definitivo a minha quimera. Não conseguindo ignorar a sua presença, tentei fingi-lo, através de uma banal distracção. Enchi as mãos de areia solta, comprimi-as, elevei-as e abri, entre dedos, pequenos canais de passagem. A areia escoou em fios, e a minha mente evocou clepsidras de antanho balizando o tempo. À força de fingir, ignorei aquela presença. Mas por pouco tempo.
Padeci então do primeiro estarrecimento dos vários que nessa tarde me desconcertaram. Terá sido uma mera extensão do meu devaneio, cujo o ponto de contacto me escapou ao entendimento? Ou realidade abrupta, que nele se intrometeu? O certo é que me vararam duas raras sensações em simultâneo, imiscuídas uma na outra como o azeite na água, conservando, cada uma, a sua distinção.
Começo por falar da mais comum entre as gentes, o déjà-vu. Foi, por certo, o mais intenso e prolongado que vivi até aos dias de hoje. Tive a impressão definida de já ter visto, grão a grão, o escorrer de todos aqueles fios de areia entre dedos. Igual impressão me provocou cada montinho de areia que cada fio erigia. O brilho do sol reflectido nos cristais dos grãos cimeiros fechou uma reprodução precisa de um episódio no passado vivido por mim.
A segunda e mais rara sensação é a de metempsicose. O facto aterrador deste episódio é que a excessiva nitidez do detalhe arenoso foi por mim avistada a partir do corpo do homem-sombra! As percepções dos meus sentidos haviam recuado obliquamente menos de dois metros, mas o meu modo de sentir era o mesmo. Agora observava, em sobressalto, o corpo-que-deixei.
Farei aqui um corte na narrativa, pois a imagem seguinte de que me recordo é a de esfregar, hesitante, as mãos do meu corpo original, ignorando o que se sucedeu entrementes.
Mal refeito do choque, enquanto as artérias e veias jugulares retomavam o seu diâmetro habitual, empurrando o coração de volta para o peito, distingui um riso muito subtil, quase inaudível. Melindrou-me desmedidamente, esse riso. Era um riso trocista, de alguém que perscrutava, sem pejo, as minhas bruscas mutações emotivas. Múltiplas e viscerais sensações tomaram-me novamente de assalto. Via-me nu como jamais me vira, desamparadamente nu.
O sol começava a baixar. No fim de Dezembro as tardes são mais curtas, aqui, no hemisfério norte. A temperatura diminuía e a brisa, como um órfão sem tecto, crescera num ápice, e fizera-se vendaval. Eu já só queria estar em casa, confortável, sozinho, não naquela praia, com aquele clima pondo-se agreste, ao pé daquela importuna e velada figura.
Sem que nunca deixasse de temer, arrisquei um acto temerário. Não incivilizado mas, de certa forma, agressivo. Voltei-me de repente e olhei, com um ar desafiante, o meu opressor. Mas acto contínuo esse ar esboroou-se em espanto, incredulidade e repulsa. Deve ter sido hilariante, a minha mudança de feições, avaliando-a pelo riso espalhafatoso que provocou no meu antagonista. Que, acaso, era EU próprio! Obviei-me vítima duma violenta alucinação, pois nenhum espelho se interpunha entre mim e o ser que estava à minha frente.
Reagi como quem não se adapta a uma sociedade dinâmica, negando veementemente as suas mudanças sem sequer ponderar a possibilidade de recorrer à razão. Apoiei uma mão na areia com o propósito de levantar-me e voltar para casa, invalidando as minhas percepções, que me diziam estar ali um gémeo do qual eu não fora informado da existência. Ele, indiferente à minha perturbação, com um sorriso escarninho estampado no rosto, interpelou-me:
– Onde vais?
Com impressionante vividez, reconheci, na voz que escutava, a minha própria voz. Contudo, esforcei-me por me manter absorto no plano que tinha traçado e levantei-me. Mas não dei um passo. Tolheu-me uma vertigem de carrossel e tombei. No chão, fitei os seus olhos implorativamente. Ele, talvez compadecido do meu desespero, atalhou o diálogo.
– Temos de conversar. – disse-me, com um ar grave.
Emudeci. Embora a interrogação “quem és tu?” quisesse sair, as minhas cordas vocais adquiriram uma dureza ebúrnea e a minha boca apenas verteu um angustioso silêncio.
– O mais importante não é saberes quem eu sou, mas sim quem és tu. E tu és um sonho. Meu, naturalmente.
“Um sonho? Mas... e os fenómenos que compreendo? O universo que me cerca? As minhas sensações? Tudo isto é falso?”, pensei eu, ainda em absoluto mutismo.
– Não, um sonho não é falso. Tem vida própria. E, se queres saber o que te está a acontecer neste momento, eu digo-to. Apareci inesperadamente para te confrontar com a morte. Cessarás em breve, quando eu acordar.
A cada palavra que ouvia, o meu terror crescia exponencialmente. Assustava-me o não precisar de articular uma palavra para obter respostas às minhas interrogações. Cheguei a crer no que me era dito por mim (ele?!). Ainda assim, uma réstia de instinto de auto-conservação impelia-me a negá-lo (negar-me??!!!). Consegui, por fim, balbuciar algumas trémulas palavras:
– E qual a prova de que não és tu um sonho meu?
– Prova provada nenhuma obterás, nem eu ta darei. Mas argumentarei que é evidente o meu ascendente sobre ti, não o contrário. Eu não adivinho os teus pensamentos. Sei-os. Sou a sua raiz. Todavia, tu desconheces os meus.
Fiquei em estado letárgico com a aparente irrefutabilidade daquelas palavras. As horas passaram. Caiu uma bátega gelada. A ténue claridade do crepúsculo sumiu-se por completo na noite. O afiado gume eólico lacerou-me os lábios e feriu-me a carne. Nenhum de nós se moveu. De súbito, o meu espírito formulou um contraditório, que a minha voz reproduziu:
– A tua última sentença é inexorável, mas apenas relativamente a mim. É inegável a subjugação da minha vontade à tua. Nada me garante, porém, que não és o sonho doutrem e que eu não sou, por isso, um sonho dentro dum sonho. Por conseguinte, nada me garante que tu, enquanto sonho, não tenhas mais do que um aparente e limitado controlo sobre mim.
“Admitindo esta possibilidade, quem sabe se, talvez por seres menos interessante, não serás primeiramente suprimido do sonho desse outrem, e não fique senão eu para alcançar o objectivo do prossecutor?
Fugaz como um relâmpago, aquele ente esvaneceu-se. Voltei a casa e preparei um banho que me serenasse. Em vão. Durante dias, dormi mal ou não dormi. Depois, procurei ajuda psiquiátrica, sem lograr relatar uma única palavra deste testemunho. Estive internado no hospício vinte dias, fortemente sedado. E desejava, mais do que tudo, que este escrito tivesse em mim um perene efeito catártico.
 

Henrique de Lemos



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Segunda-feira, 31 de Março de 2008
Como escrevi “Nobre Estripador”
Março 31, 2008

A gente pequena habitante das suas casinhas nos subúrbios nunca poderá apreender a verdadeira dimensão da literatura. Sejamos francos: a real apreciação da arte está reservada apenas aos espíritos elevados. Não discuto a existência de um núcleo de assíduos que intervalam a monotonia do movimento casa-emprego-casa com umas horas de leitura mas, aqui para nós, duvido muito que essa fornalha de gente só, em permanente combustão de si própria, tome dela – da arte literária – a substância que a engrandece. Para estes pobres coitados sem mais nada que fazer, ler um livro ou pedaços dele é tão enriquecedor como aparar a relva do jardim num dia de primavera. Sabe bem, é nitidamente diferente de adormecer no sofá, mas não lhes serve de grande coisa.

Sempre tive para mim que a literatura só existe em duas formas: a má e a incompreendida. É da última que trata o meu grande romance “Nobre Estripador”. Já devem ter ouvido falar. A par de dois ou três folhetins franceses subvalorizados – e um americano bastante razoável – conseguiu entrar directamente na galeria dos grandes romances incompreendidos de qualquer século e o autor – eu próprio – no lote restrito dos artistas bafejados pela sorte de poderem viver às custas do seu enorme talento – e aqui não estou a exagerar.
Não digo que exista uma grande diferença entre o artista e o homem comum. Biologicamente são iguais. Psicologicamente até, são bastante parecidos. Duvido mesmo que um seja mais inteligente que o outro – se os artistas fossem inteligentes não desperdiçariam dias inteiros a trabalhar o que quer que fosse. No entanto, duma coisa não tenho a menor dúvida: o artista não sabe porque trabalha. O homem comum trabalha porque “deve”. E nisso reside a diferença principal.
Porque escrevi eu então “Nobre Estripador”? Porque não me dediquei a aparar o jardim ou a ver os outros apararem os seus jardins? Porque razão me despedi do meu emprego e de toda a vida social e me fechei no escritório a acabar uma das obras do século? É isso que vos tentarei explicar e a mim próprio. Foi por isso que escrevi “Como escrevi ‘Nobre Estripador’”.
 
Tendo sido sempre o melhor dos alunos nas melhores escolas onde fui educado, aos dezoito anos deparei-me com duas alternativas: abandonar os estudos e trabalhar – como muitos – ou ingressar na faculdade – como os espertos. O meu pai aconselhou-me a segunda hipótese. Sempre acatei os conselhos do meu pai, não sem algumas reservas num ou noutro ponto, fruto da diferença de idades. No entanto, aquele coincidia exactamente com o meu plano pós-liceal: adiar o inevitável por mais quatro anos. Assim o fiz, para meu bem e da humanidade.
Se o primeiro ano de graduação foi passado entre a biblioteca e os diversos bares do Campus, provando todo o tipo de conhecimento milenar – o escrito e o misturado com gelo – o segundo foi bastante diferente. Acometido dum certo tédio, provocado pela repetição contínua das mesmas misturas em livros e bares diferentes, no ano dois resolvi abster-me da vida académica e começar a rascunhar o que viria a constituir material para o capítulo dois e quatro de “Nobre Estripador”.
Na altura, pensara escrever algo parecido com um romance sério. Tinha-lhe mesmo dado o insólito título de “A Casa Grande do Lago Fishbone”. No entanto, após mostrar alguns excertos a amigos mais próximos, percebi que era ainda demasiado imaturo para embarcar na árdua tarefa da literatura de fôlego. Decidi então parar e dedicar-me aos contos.
O meu primeiro conto foi uma tarefa inesperadamente árdua. Arduamente inesperada, também. Trabalhei dias a fio, fechado na minha residência nos arredores do campus. Recusei-me todo o tipo de lascívias e distracções. Dois meses depois de ter iniciado a hercúlea tarefa, exibi com um certo orgulho o resultado ao editor do jornal dos alunos. Era um tipo novo e um pouco snobe, dotado de um curriculum invejável – era filho de um famoso publicista. Sempre tive consciência que o génio é algo geneticamente transmissível, por isso e apesar de nada conhecer de escrito do jovem editor, confiei no seu julgamento.
A reacção não foi entusiasmante em exagero. Porém, penso que o tipo gostou minimamente do que leu, pois anuiu publicá-lo no número seguinte. O conto, intitulado “Águas Furtadas, Desejos Semelhantes” não obteve grande reacção por parte da vintena de leitores do Jornal mas proporcionou-me a entrada no meio literário da faculdade.
 
Pertencer a um círculo literário ou a qualquer outro círculo não tem nenhum outro interesse especial que não o de conhecer novos companheiros de bebida e, num ou noutro caso, raparigas. Se aos trinta e quarenta anos as raparigas, escritoras ou não, se resignam ao papel de caricaturas de suas mães, aos vinte podem ser adoráveis. Na vida em geral, dedicam-se à construção subliminar de uma certa reputação. No plano das letras, maioritariamente à poesia. Essa tendência ligeiramente ingénua e romântica poupa aos “caçadores furtivos” a maçada da leitura exaustiva antes do prémio. Um poemita ou outro, intervalado por um copo de vinho é o suficiente para estabelecer uma relação mais próxima e compensadora.
Foi no círculo do Jornal de Letras do campus que conheci Sara Van Gauss. Ao contrário da ideia que tinha sobre as aspirantes a escritoras da sua idade, Van Gauss já adquirira a tal reputação, preparando-se agora para abandonar a poesia. Não esperou que eu lesse os primeiros capítulos do seu romance para me deixar entrar no seu mundo desbragadamente erótico e fascinante.
Como podem adivinhar, nos dois anos seguintes se alguma palavra escrevi foi o seu primeiro nome numa árvore, dias antes de me trocar por um atávico neto de um profundo capitalista.
O desgosto do abandono de Sara levou-me a redefinir prioridades. Concluí a faculdade e estabeleci-me como consultor financeiro júnior num pequeno banco com grande futuro. Um emprego respeitável – esperava eu – proporcionar-me-ia a possibilidade de organizar a minha vida na direcção duma casa maior, um carro de jeito e o suficiente tempo livre para retomar a minha escrita. Estava enganado. Mudei de renda, quase sem mudar de apartamento. Comprei um carro em segunda mão alérgico ao fim-de-semana. E quanto ao tempo livre... no pouco que tinha sentia a necessidade de evitar a secretária a todo o custo e dedicar-me antes a actividades libertadoras como visitar amigos ou sentar-me num banco de jardim e imaginar que aparava a minha própria relva.
 
Foi num jantar de amigos que me chegou aos ouvidos a história de um tipo que tinha ganho uma fortuna com a poesia. Segundo um dos meus mais próximos a poesia estava “na berra”. Ao ouvir isto, desculpei-me aos convivas e regressei imediatamente a casa. Se a poesia é que estava “a dar”, se pela poesia o mundo poderia finalmente compreender o meu formidável génio, então a luz da poesia brilharia sobre mim iluminando também o meu futuro público. No resto do fim-de-semana mergulhei na leitura atenta dos poetas clássicos e alguns modernos, dos quais retirei uma ideia geral do assunto.
Na segunda-feira seguinte liguei para o escritório e pedi à secretária que me enviasse a papelada necessária para meter baixa. Fui então visitar o dr. Orlando, o meu médico de família. Garanti-lhe que estava com uma depressão que me poderia levar ao suicídio ou à própria depressão. O bom e anafado Orlando não me fez a desfeita e assinou os papeis da baixa. Tinha um mês. Um mês para escrever um livro de poesia que revolucionaria o mundo poético nacional, até europeu.
Escrever poesia acabou por ser mais fácil do que esperava. A regra de ouro em voga era evitar a rima – no fundo, o grande desafio dos poetas antigos. Porém, a minha notável exigência auto-critica viu-me forçado a prolongar a baixa por mais três meses. Recorrendo a laboriosa ginástica médica e financeira, consegui ganhar tempo para rever, melhorar e aprofundar o meu estilo.
Ao fim de seis meses de duro trabalho, a obra estava concluída. A reacção dos editores dividiu-se entre o desinteresse e o encorajamento. Como era óbvio, todos tinham medo de arriscar numa obra também de si arriscada e inovadora. Nada que não esperasse já. Um dos editores sugeriu mesmo a inclusão de alguma rima. Ao que parecia, em seis meses a rima estava de volta. Chegou mesmo a afiançar-me um adiantamento se inserisse algum colorido rimado nos meus poemas. Como podem adivinhar, não aceitei. Sempre tive para mim a não subserviência do imperativo criador à circunstância.
Pedi ao meu pai para falar com um amigo de um amigo que escrevia num jornal semanário. O amigo do amigo fez a gentileza de receber o manuscrito, ligando-me passado quinze dias a combinar uma reunião. Através do amigo do amigo do meu pai, que tinha um amigo editor – um dos que recusara a obra – consegui que o editor amigo do amigo do amigo do meu pai, reapreciasse o meu talento. Tal como calculara, uma segunda leitura revelou todas as qualidades duma primeira investida poética, não só digna de publicação, como de substâncial orçamento promocional.
 
Nem dois meses tinham passado e a minha colectânea poética intitulada “Serpentário” estava em destaque nos expositores das principais livrarias. Tal como já esparava também, os críticos atiraram-se a mim como leões. Nos meses que medearam a escrita da publicação a rima tinha reaparecido, caído em desuso, regressando de novo para ficar. “Serpentário” não tinha uma única rima. Acusaram-me de “ultrapassado”. Disseram que me levava demasiado a sério. Um crítico chegou mesmo a ficar indignado com a paginação do livro, acusando-a de, e cito: “displicente e moralmente pejorativa”. É óbvio que não me abati. Decidi regressar em força ao “Nobre Estripador”, no fundo, o trabalho que me interessava e no qual deveria depositar todas as minhas energias.
 
Despedi-me. Na verdade, com a ajuda de um bom advogado amigo do meu pai, consegui que me despedissem sem justa causa, o que levou a que uma generosa indemnização se acomodasse temporariamente na minha conta bancária. Sem problemas de dinheiro e com tempo suficiente, regressei ao romance.
Passei cerca de meio ano tentando melhorar e adaptar os dois capítulos que escrevera na faculdade para a nova ideia que tinha para a história. Como sabem, o título antigo era “A Casa Grande do Lago Fishbone”. A ideia original era o relato detalhado de um fim-de-semana duma família disfuncional em que o avô, velho e doente terminal, acaba por se revelar a pessoa mais lúcida no meio de gente jovem e problemática. Foi muito difícil adaptar o segundo capítulo – a descrição da casa grande e do lago – para as ruas de Londres do século XIX, onde começa a saga do “Nobre Estripador”. Ao fim de muitas tentativas, desisti. Com muita pena minha, um lago no Canadá não se parece de maneira nenhuma com o ambiente soturno e industrial londrino. O capítulo quatro, tratando-se do relato de um sonho do avô, foi facilmente transponível para a personagem principal do estripador.
 
Dois anos depois do meu injusto despedimento e com duas ou três paragens por ano para descansar na nossa casa na costa, todo o romance estava delineado, quatro capítulos escritos e dois em vias de finalização. Mas o optimismo na arte não se compadece com a teia pessimista que a vida tece em volta do ser a que chamamos artista. Todas aquelas minhas investidas pela costa acabaram por condicionar uma enorme desvalorização na minha conta bancária. Necessitava, mais que nunca, de um salário.
Sem dar por ele, o tempo passara por mim e a minha cotação no mercado de transações de massa bruta de trabalho descera a pique. A morte do meu pai tinha deixado uma mancha substancial no meu currículum. Dois anos era muito tempo para a gente dos negócios e, para meu lamento, o meu amável progenitor já cá não se encontrava para colmatar essa área branca, vazia de actividade para qualquer das pessoas comuns que não percebem nem nunca perceberão o trabalho que a arte dá.
Para arranjar uns tostões, vi-me forçado a colaborar num pequeno jornal de província que me obrigava a deslocações constantes ao campo e a conviver com um velho e rabujento editor, provavelmente um artista da facção cobarde – aqueles que não arriscam trocar o conforto do funcionalismo social pelas agruras de uma vida dedicada ao belo. Mas o bom e velho editor acabou por me ensinar generosamente duas ou três coisas sobre a escrita que me tinham passado ao lado. Tratando-se dum jornal de província que ninguém lia, as colaborações primavam pela excelência do uso da língua para colmatar a falta de novidades. A experiência jornalística engrandeceu o meu vocabulário e activou em mim o gene da fluidez de discurso.
 
Nos dois meses que colaborei no jornal ganhei novo fôlego para escrever e, finalmente, completar o “Nobre Estripador”. Ganhei também uma pequena úlcera que, a par do encaixe financeiro proporcionado pela herança do meu pai, precipitou a minha saída do meio jornalístico.
Arriscando com a saúde, decidi ignorar a úlcera. Cautelosamente, aproveitando as lições do meu passado perdulário, coloquei algum dinheiro de parte. Com o resto da herança encetei uma jornada pela velha Europa em busca de inspiração para o fôlego final do “Estripador”.
 
A primeira paragem foi Londres. A impressão que a cidade me deixou foi a de que, na actualidade, se assemelhava mais com a londres novecentista que a ideia que eu fizera da cidade no século dezanove. Isto obrigava-me a reescrever de novo todo o segundo capítulo, o que me angustiou profundamente e ditou o adiamento do meu regresso até ele se tornar descaradamente inevitável face à escassez económica pessoal.
Regressado do meu périplo inspiracional, retomei o trabalho com afinco. Os primeiros tempos foram de intensa produção. No entanto, uma úlcera mal curada começava a incomodar verdadeiramente. Depois de uma semana de cama sem me conseguir mexer acabei por visitar o filho do dr. Orlando – o meu novo médico de família, já que o próprio morrera de ataque cardíaco ditado pelos charutos que tanto apreciava. Depois de duas semanas entre hospitais e clínicas de análises, um eminente catedrático do Hospital Universitário deu-me esta terrível notícia: a úlcera tinha evoluído para um cancro no estômago. Segundo o especialista, deveríamos iniciar de imediato o tratamento, sem que a erradicação total do tumor fosse garantida. Profundamente abatido e atulhado de comprimidos para as dores, regressei a casa para a noite mais triste e ao mesmo tempo iluminada da minha vida.
 
Ali estava eu, pouco mais de trinta anos, ex-poeta, ex-jornalista, ex-tudo, solteiro, sem ninguém, face-a-face com uma doença potencialmente incurável, um obstáculo inadiável na minha aventura de acabar o “Nobre Estripador”. Quase chorei.
Pela noite escura e silenciosa, pensei muito sobre a minha vida e sobre tudo o que rejeitara para me tornar um grande escritor. Pensei nas manhãs que não vira nascer ou que não apreciara devidamente e nos entardeceres desperdiçados. Pensei no explendor das Primaveras que só sentira ao de leve, embatendo no vidro da janela e nos dias de Verão enfiado no escritório a martelar as teclas. Pensei nos lábios sedosos das mulheres que não beijara e em todos os cantos do Mundo que não conhecera.
No auge da minha angústia, posso-vos jurar que ouvi o som dos sapatinhos do filho que não tivera e vi ali, do outro lado da cama, aquela que poderia ter sido a minha mulher. Sorria. Era bela. Segredava-me belas frases que nenhum poeta alguma vez escreveu.
Desamparado e doente, senti também uma enorme raiva por todas aquelas coisas que os críticos tinham dito de mim sem me conhecerem e por todas as pessoas que passaram pelas livrarias muito ocupadas com as suas vidas, sem um certo tempo para arriscarem olhar sequer para a capa do meu livro de poemas – e era uma bela capa que tinha custado uma pipa de massa.
No topo da torre do meu desespero, passou-me pela cabeça saltar uma qualquer vedação de um qualquer jardim de subúrbio e aparar uma família desconhecida, da avó ao filho mais novo. Não esquecer o gato.
 
Depois acalmei-me. Inspirei fundo. Já era manhã cedo quando resolvi que não morreria sem acabar a minha grande obra incompreendida, intitulada “Nobre Estripador”. Lutaria contra a doença com todas as minhas energias. Custasse o que custasse, não me deixaria morrer sem que o meu romance fosse publicado e devidamente apreciado. Animado deste pensamento de esperança e força interior, adormeci. Para sempre.
 

Hugo V. Costa



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Quarta-feira, 19 de Março de 2008
Uma lágrima na Bica
Março 19, 2008
Se desejares com força poderás sempre esquecer uma coisa. Mas se desejares ainda com mais força não poderás nunca fazer com que não tenha acontecido. Mas será este o tempo verbal? Será esta a conjugação correcta? Careço de explicações pois o português nunca foi o meu forte. Em tudo o resto fui fraco. Mas uma coisa eu sei. Julgo que sei. Estes pensamentos levam-nos sempre ao ponto de partida. Ao local onde tudo começou. Onde tudo sempre começa. E onde me encontro agora. São 23 horas e mais alguns minutos que me custa a precisar. Está uma noite clara e quente, mas a minha pele está arrepiada como se respondesse a um primeiro toque. As primeiras vezes são sempre assim. Indecisas. Talvez de arrepiar, embora não saiba se é este o adjectivo ou a forma correcta de o dizer. O que sei é que acabo de entrar. O número que o cume da porta me diz está certo. Julgo que está. E não seria outro se tudo fosse de outra maneira. Também sei que está calor, muito calor. E que hoje me torno assassino. Sim, assassino. Aquele que mata. Aquele que decide. Sorrio ao pedir uma cerveja. Franzo um olho ao bebê-la. Está morta. Os dois seres de nojo que estão à minha frente ainda não. Ele, baixo como de vergonha. Ela, loira como nunca fora. Nem se o tivesse desejado muito.
No tecto, uma mosca desafia a sua curta existência, mas, astuta escapa ao crematório rumo à noite, pouco menos quente. No chão, com os seus pés inchados, o casal desencontra-se nas conversas, contrariando a provável ironia de se terem cruzado um dia na velha Calçada da Bica. Consigo imaginá-los, como pequenos fragmentos de um filme errático. Um a descer e o outro a subir. Podia ser o contrário. Riem-se de desdém. Um do outro. E eu de ambos.
Passo o dedo pela garrafa e sinto-me já em sintonia com a espelunca. Sujo. Peço outra cerveja e olho para a televisão que vomita banalidades. Uma retrospectiva do Elvis, julgo. "Only You". Sempre odiei o Elvis. Mas não só ele. A loira falsa que se comove agora também odeio. Parece-me menos feia assim que uma lágrima ameaça brotar-lhe dos olhos. É o fim. É o início. Aconchego o revólver em segunda mão nas calças. Será simples como uma inevitabilidade. Custará apenas o segundo em que se tornará num facto. Eu mato, tu matas, ele mata, nós morremos, vós morreis, eles morrem. Penso que se conjuga assim. Será assim? Para mais ela canta. E ele ri de gozo, as faces avermelhadas. O porco. Tiro o revólver devagar. Tremo ligeiramente. Não está ninguém em redor. O bar está vazio. O bar está sempre vazio. E cheira a podre. Ou a morte. Talvez seja de mim.
Puxo o cão atrás e sinto uma ténue comoção. Continuo arrepiado. Ela canta emocionada... "Only You". Julgo que se está a rir para mim quando o cano do revólver risca a barriga do balcão. Eu devolvo-lhe o sorriso. Quase cúmplice. Não. Cúmplice de verdade. Porventura pela primeira vez na vida. O sabor que navega na minha boca é agridoce. Pergunto-me se será sempre assim. Como se pudesse ser de outra maneira. Não juro, mas penso que a mosca voltou a entrar. Procurará o crematório no tecto? Estaria a noite ainda mais quente lá fora?
Fecho os olhos em contracção. Ou julgo cerrá-los. Podes obrigar alguém a fechar os olhos, mas ninguém a dormir. Estou acordado. E o tempo já quase se mastiga. Que horas serão? Nada mais será como dantes. Como se fizesse diferença. Como se tivesse um porquê. Como se não fosse tudo o mesmo. Abro-os agora, aos olhos. E vejo tudo em pormenor. Estou sentado. Primeira fila sobre o balcão. E são 00h00. Gosto de sessões que comecem a horas certas. Tudo se passa em tempo real. Presente do indicativo? Posso ver tudo. Sou aquele que tudo decide. Tenho sede.
- Mais uma cervejo... - avança o anão vermelho. E eu pergunto-me se ele teria dito cervejola caso o disparo à queima roupa não o tivesse interrompido. Penso que sim. Cervejola. Mas a bala atinge-o em cheio na têmpora. E o vermelho que jorra dela cai-lhe como um lenço demasiado garrido. A música é agora dos Beatles. Sempre odiei os Beatles. "All we need is love". Ridículo, não?
Se pudesse condensar aquela fracção de segundo diria que o meu maior desejo seria assassinar a Humanidade inteira naquele disparo. Ou amá-la como um todo. Faria diferença se pudesse ser de outra maneira? Podes obrigar alguém a estar contigo, mas ninguém a amar-te. Ele derruba agora as prateleiras de vinho rasco e cai. Ela? Ela olha para mim, ainda comovida pelo Paul McCartney e demais farsantes. Não parece sequer assustada. Uma lágrima cai-lhe porém das faces gordas. Talvez os tenha amado na juventude e puxado os cabelos que nunca foram tão loiros como hoje. Sobre ela disparo duas vezes. Falho o primeiro. Não o segundo. Ela tropeça e agarra a garganta. Quase parece sorrir, mas talvez fosse do choro, nunca percebi a diferença. A lágrima, essa, sei que é a mesma. Única. Gostava de a lamber para saber se é agridoce. Se é este o sabor da primeira vez. E se pode haver outro sabor a partir de agora que tudo mudou. O pudor impede-me. Silêncio agora, apetece-me gritar! A televisão não o respeita. Apetece-me fuzilá-la, sem mais. Mas é uma boa televisão. Deve ter sido cara.
Estou tentado a dizer que fecho os olhos neste instante. Mas estou a abri-los ao ouvir o tsss da mosca a arder no crematório. Fará diferença? A televisão continua a falar dos grandes ícones da música. Elvis; Beatles. Sei lá que mais. Odeio todos. Quase tanto como o casal de nojo defronte mim. São 00h00. Mas poderia ser outra hora qualquer de um outro dia qualquer. A cerveja ainda está morta nas minhas mãos. O casal de nojo não. Mas será esse o tempo verbal? A conjugação correcta? Se desejares com força podes esquecer uma coisa. Mas se desejares ainda com mais força não poderás fazer com que não venha a acontecer.
- Mais uma cerveja - peço, cúmplice, para o casal. Tremo ainda. Está calor.
- Uma cervejola gelada? - pergunta o anão a rebentar de rubro e com um esgar de riso nos lábios, enquanto ela ajeita o cabelo loiro e de raízes negras, talvez para seduzir o Elvis. Limpa a lágrima com um lenço. Imundo.
- Não, morta - respondo. Como se pudesse ser outra coisa.


Jorge Flores

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Segunda-feira, 10 de Março de 2008
A derradeira história do Homem-Planta
Março 10, 2008
A porta do roupeiro entreaberta deixava espreitar o interior de camisas gastas de tons neutros entre outras peças igualmente velhas e usadas que variavam nas tonalidades de azul-escuro, castanho ou cinzento. Às vezes preto e novamente cinzento ou castanho. No espelho interior da porta, manchado pelo tempo e humidade, reflectia-se um cenário quase monocromático de peças velhas e mal cuidadas de onde destoavam apenas as cores vivas de um aparente uniforme verde e amarelo pendurado num velho cabide.
Encostada à parede, a cama desfeita de lençóis encardidos e mantas sobrepostas de eras passadas transmitia ao quarto um cenário de desarrumação que se prolongava nos vários copos esquecidos sobre a mesa-de-cabeceira, lenços de papel sujos e amarrotados caídos no chão, peças de roupa abandonada sobre uma velha cadeira de madeira e sem brilho, e no bacio de plástico azul com manchas amareladas que espreitava aos pés da cama.
A casa era velha. Na pequena divisão da entrada, acumulavam-se caixas de papelão cheias e objectos inúteis amontoados, por debaixo de casacos grossos de cores escuras, pendurados num cabide de parede. Pratos, panelas, frigideiras e talheres, com restos de comida, dividiam a desordem de uma pequena bancada de mármore e uma boa área da mesa da cozinha. Batatas mirradas e cebolas moles amontoavam-se em caixas de plástico ou papelão, a par dos sacos de plástico de cores berrantes e amarrotadas. Ao lado do fogão de bicos tisnados e superfície engordurada, o velho frigorífico insistia num zumbido monocórdico e prolongado, entrecortado de estalos regulares.
Na sala, sentado no pequeno sofá às riscas castanhas do canto junto à janela, o homem afagava a barriga flácida e proeminente. Rosto descaído com duas rugas vincadas dos lados da boca, nariz vermelho e esponjoso, e olhos fundos e vazios. O cabelo é branco e ralo a deixar ver uma testa demasiado grande. Tem os braços grossos mas moles.
A divisão estava na penumbra com os estores descaídos a meia janela a deixarem entrar uma luz tímida de Outono. Um último rectângulo estreito de luz fugidia desenhava-se aos seus pés. No resto, a mesma desordem monótona de lixo e objectos inúteis espalhava-se sobre o sofá grande, um cadeirão velho, a mesa da sala, e pelos cantos de chão encostados às paredes, enquanto a televisão fora de época aguardava, paciente, em cima da mesinha, o horário da noite para se tornar o centro das atenções.
O homem contemplou com indiferença toda a extensão do cenário desolador antes de se levantar com dificuldade. Os sessenta anos pesavam-lhe nos ossos. Bebeu o que restava do vinho que estava num copo ao lado do sofá e caminhou vagarosamente para o quarto. Espreguiçou-se longamente antes de voltar a acariciar o ventre com as duas mãos. A porta entreaberta do roupeiro chamou-lhe a atenção. Observou o interior com desinteresse e deitou uma olhadela ao espelho. Voltou de novo a atenção para as roupas e, subitamente, algo lhe chamou a atenção. Com cuidado, retirou o cabide de onde pendia o traje verde e amarelo de aspecto invulgar. Ficou a contemplá-lo à sua frente, largos minutos, com o cabide a pender do braço esticado. «Passámos muitas aventuras... Eu e tu... Muitas aventuras... Bons tempos que já lá vão... Bons tempos...» Tocou com leveza o tecido suave, agitando as pregas murchas.
Pendurou o cabide no puxador de uma porta fechada e abriu mais a que tinha o espelho, fixando-se no reflexo triste que este lhe devolvia. Empurrou para cima as peles moles da face com as duas mãos. Depois, fez músculo com força e pôs os braços em ângulo recto. Tocou num e noutro braço desesperando com a evidente flacidez. «Bons tempos que já lá vão...» E desceu as duas mãos para a barriga enquanto se virava num perfil que contemplou ao espelho. Lembrou-se dos cigarros consumidos à janela nos fins de tarde frios e, instintivamente, levou a mão ao bolso da camisa. Acariciou o maço junto ao coração como algo seguro e fiável.
O primeiro estrondo interrompeu-lhe o plácido encadeamento dos pensamentos sem se aperceber realmente do que estava a acontecer. Seguiram-se o segundo e o terceiro. E depois, mais três quase de seguida. Dirigiu-se à janela e viu mais duas pedras embaterem com o mesmo estrondo num bidão de latão ferrugento e sossegado num canto do quintal. Do outro lado do muro, junto à entrada, três rapazes, muito novos, estavam de cócoras a apanhar pedras que serviriam para futuros arremessos. Ergueram-se e continuaram na mesma rotina. O embate das pedras no metal ferrugento produzia um som estridente que parecia agradar-lhes. «Diabo dos miúdos – disse com ironia – Não têm mais nada para se entreter senão isto... Diabo dos miúdos».
Deixou tombar a cortina à frente dos vidros e seguiu vagaroso para a cozinha. Abriu um armário, depois outro, vasculhando o interior impaciente. Depois, abriu e fechou outra porta. E repetiu os gestos mais uma vez. Por fim, decidiu-se a rumar à sala. Por momentos, aparentemente perdido, acabou por se dirigir à mesa, onde, depois de desviar um monte de jornais e revistas velhos, encontrou um saco transparente com rebuçados coloridos, que agarrou com avidez.
Satisfeita a ambição dos seus gestos, deslizou sorridente pela divisão da entrada de novo em direcção à cozinha e daí para a porta que abria para o quintal. Mais uma vez, espreitou através do vidro os rapazinhos que entretinham o tédio no arremesso de pedras ao bidão. Ficou assim, indeciso neste olhar longo para a repetição de gestos lassos, por um minuto ou dois, antes de se decidir a abrir a porta para o exterior. Entretidos nestes afazeres, os rapazes nem deram pela figura barriguda e mal vestida que estacara à porta da casa. Até que aquele que parecia o mais velho dos três deu o alerta e os outros dois prontamente agarraram as mochilas e malas caídas no chão, prontos para a retirada.
A reacção imediata dos miúdos toldou a perspectiva do velho cujas pernas tremeram até quase cair. Encostou-se no caixilho da porta e acenou em esforço o saco de rebuçados à altura da cabeça. «Eh! Não precisam ter medo! – gritou numa voz rouca – Venham cá! Não precisam ter medo!» Do outro lado do muro, os três rapazinhos deitaram um olhar amedrontado para aquela figura de aspecto sujo e desagradável que os chamava, e puseram-se em cima das bicicletas. O velho gritava. «Venham cá! Tenho aqui isto... para vocês! Ouviram?» Um dos miúdos ainda o olhou uma última vez, deixando que os outros partissem à sua frente, mas depois, também ele desatou a pedalar depressa ao encalço dos amigos.
Nesse fim de tarde, de novo dentro de casa, o velho foi à cozinha buscar uma garrafa de plástico com vinho e regressou para o sofá da sala, onde bebeu dois copos de seguida, enchendo logo um terceiro. Depois, permaneceu o resto da tarde na penumbra, sentado no sofá em frente da televisão desligada, com o saco de rebuçados de cores vivas em cima dos joelhos. Mecanicamente, um após outro, retirou todos os rebuçados de dentro do saco, desembrulhou-os com mãos trementes e gestos lentos e comeu-os. Às vezes, interrompia este processo com um cigarro que fumava também devagar. 

J.P. Limão
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Sexta-feira, 29 de Fevereiro de 2008
O café
Fevereiro 29, 2008
Trazias no braço um jornal velho, desbotado pelas gotas de água grossas que caíam de um céu chorudo e impaciente. Calçavas umas botas castanhas iguais à cor dos teus olhos e que te concediam um ar de escuteiro adulto. Caminhavas a passos incertos, mas com uma direcção definida. Gostavas de tramar o destino e perdias quase uma hora num trajecto que se fazia nuns escassos dez minutos.
Perdias-te no café da esquina a fumar um café e a bebericar um cigarro, roías as unhas com a paciência salutar de um domingo cinzentão. Decifravas as palavras cruzadas esbatidas em manchas de água, com um sorriso miudinho nos lábios e bebias um gole de café de cada vez que acertavas numa mais ou menos difícil.
O dono do café nutria por ti alguma admiração, escondida por uma certa antipatia. Ou seja, eras um tipo bem parecido, que tinha sempre um sorriso alegre de bons dias, não reclamavas da vida a torto e a direito e parecias ter um emprego estável, ao contrário da maioria dos habitantes masculinos desempregados deste bairro, que se arrastavam entre casa e o café para obterem o lugar na mesa com melhor vista para o televisor e comentarem entre si os passes mágicos da última temporada de futebol. Lidavas diariamente com os olhares alheios, mesquinhos e trocistas, que te viam como um menino armado em intelectual com as suas palavras cruzadas, que em vez de ler algum jornal desportivo, preferia enfiar a cabeça num livro qualquer grosso e com a capa roída pelo tempo.
Ela era diferente, não de ti, mas do resto. Já há dias que seguias aquela figura, apenas repousando o olhar nas palavras cruzadas esquecidas na mesa. Era breve a passagem dela pelo café, mas para ti pareciam horas, era um espectáculo.
Ela entrava, pedia qualquer coisa com uma voz tranquila e só depois se sentava. Cruzava as pernas, mexia rapidamente o café, enquanto procurava qualquer pedaço de si na mala aberta. Movia-se confortavelmente naquele café povoado por homens barulhentos, pois gostava de permanecer anónima no meio do caos futebolístico.
Reparavas nos pormenores, ávido de informação. O cabelo dela armado com jeitos traiçoeiros, as mãos brancas, um olhar de quem quer mais, mais da vida. O teu elo de ligação crescia consoante te apercebias de mais detalhes.Para os restantes olhares masculinos, ela era transparente, porque não trazia um decote pronunciado ou uma saia fresca. Era como um quadro esquecido que se pendura nas paredes, já fazia parte da paisagem do café. Mas para ti, a sua figura preenchia o espaço, o café e todos os dias um bocadinho a mais da tua alma.
Nessa noite não te conseguias concentrar nas cruzadas. Preferias manter as mãos frias e suadas dentro dos bolsos fundos do casaco e para te entreteres pedias mais um café. Mais uma torrada. Mais um guardanapo.Ela estava inquieta e saiu apressadamente do café, após ter recebido um telefonema em que não falou, apenas ouviu.
Hesitaste mas atiraste umas moedas fáceis para cima do balcão e seguiste atrás dos seus passos. Vivia num prédio cinzento. Mal pintado e com cinco andares. Onde os moradores corriam as persianas e a estrutura fechava os olhos. Uma porta ferrugenta abria as hostes, uma chave amarela impedia o acesso a estranhos.
Novo telefonema. Ela acabou por entrar e correr as escadas do prédio com os saltos a pisarem o chão pronunciadamente. Ouviste uma porta fechar com estrondo. E viste-a descer minutos depois, carregada com malas e roupa a sair dos sacos mal fechados.
Atravessaste o passeio. Comentaste que a noite ainda era uma criança, mas que a lua a obrigaria a crescer. Deixaste escapar um sorriso mal pronunciado. Preciso de um café, há ali um que está sempre aberto até más horas, sugeriu ela. Precisas de uma conversa com palavras cruzadas, não há nada melhor do que isso para descontrair. Preciso primeiro de me sentar, suspirou ela entredentes.
Caminharam devagar e sem falar mais. Algumas peças de roupa mais leves caíram dos sacos, mas nenhum dos dois deu por isso. Logo que entraram foram submergidos pela nuvem de fumo que se tinha instalado naquele espaço. Os presentes viraram costas e olharam para os dois recém-chegados. Parecia que troçavam deles. Ou que estavam curiosos. Ou simplesmente, que se estavam a borrifar para o assunto e só queriam perceber se era desta que o intelectual do bairro se aproveitava de alguma mulher a jeito.
Afundaram o corpo nas cadeiras e esqueceram os olhares alheios e uma ou outra boca mais arrojada. Beliscaram uma sandes e torceram as mãos um do outro. Já tinha reparado em ti, nas tuas mãos, nos jeitos do teu cabelo... Entornaste o café com os nervos. Reconheceste-me neste antro esquecido? Sim, acenaste com a cabeça. Para ser franca, de ti só reconheci as palavras cruzadas esquecidas nas mesas do café. És parecido com o meu primo. Acho que não és parecida com ninguém, pensaste.
Conversaram sobre banalidades e sobre o tempo. Não revelaste os teus segredos, que ele tanto queria espreitar. Às tantas disseste que tinhas uma boleia à tua espera. Ele perguntou de quem. Um amigo, murmuraste. Tens tantos amigos quantos os dedos das tuas mãos, pensou ele amuado. Um amigo antigo, da idade dos meus cabelos brancos. Deste-lhe um abraço sentido e escondeste a cara no casaco dele. A buzina do carro enervada pela espera, apitou. Ele acabou por não conseguir ver a cara do condutor. Ela soltou-se dos braços masculinos fracos e voou para dentro do carro velho, apesar de estar carregada de sacos. O veículo desapareceu a alta velocidade.
Pela primeira vez, desde há muito tempo, sentiste-te tonto. Com a cabeça a andar à volta e os olhos húmidos, do fumo do café, do fumo do café, repetiste para contigo mentalmente. Sentaste-te outra vez na mesa do café. Refugiaste-te nas palavras cruzadas. Encontrar algo fortuito quando não se espera. Onze letras: Serendípias. O dono do café aproximou-se de ti com as costas dobradas. Está na hora de fechar. Não pense mais nisso. Ela não é boa espécie. Estavas alheado do mundo. Sim, ela, a "Russa" como lhe chamam. Anda por aí aos caídos com a vida. Já a vi aí passar na rua com três ou quatro homens diferentes. E tudo na mesma semana, veja lá.
A vida não passa dum jogo de palavras mal cruzadas. Fechaste o livro e rumaste a casa. Amanhã é outro dia. Amanhã é dia de trabalho. Deste um pontapé numa pedra. Magoaste-te. As botas de escuteiro desta vez não te protegeram.

Inês Maria


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Quinta-feira, 21 de Fevereiro de 2008
Obsessão pela vida
Fevereiro 21, 2008
    Vivia uma obsessão pela própria vida e assim expressava o seu horror. A ânsia de tudo era cal que lhe abrasava os sentidos. Pasmava de medo quando tomava consciência de que os seus globos oculares se reviravam de felicidade: encantava-a sobretudo o hediondo e o absurdo.
     À luz da lâmpada fosca, via-se inalando vapores fétidos no centro de uma sala elíptica, matizada doentiamente: tecto verde-bílis, côncavas paredes roxas, cortinas marrom e um escarlate sanguíneo ensopando papéis espalhados pelo chão.
     Corria à procura de um recanto inexistente, retomava o fôlego e corria de novo, ávida, tenaz e nunca cansada. Contou-mo ela: fugia de si mesma, assustada porque atraída pelas caras deformadas e membros esfacelados que complementavam aquele repugnante pictórico.
    Jamais se equilibrou, jamais viveu uma hora que fosse em total harmonia, jamais intuiu que o seu mundo abarcava todo o mundo, jamais compreendeu que as leis universais são irrevogáveis.


Henrique de Lemos

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