Segunda-feira, 21 de Abril de 2008
Uma questão de fé
Abril 21, 2008

A partir de uma ideia de Seymour

 
O telemóvel agitava-se numa vibração nervosa e estridente em cima da mesa-de-cabeceira, antes de começar a soar uma música em notas roufenhas. Sentada na cama, com o tronco envolvido até pouco acima do peito pelo lençol entalado entre os dois braços nus que despontavam do tecido branco, M suspirou e olhou impaciente para o aparelho enquanto dava uma baforada lenta e prolongada no cigarro.
«Não atendes? – perguntou-lhe uma voz masculina». M fez um ar aborrecido e olhou para as imagens em movimento na televisão situada no móvel aos pés da cama. «Não – respondeu sem encarar o homem a seu lado – Não me apetece». Ele permaneceu indiferente. Costas apoiadas na almofada, peito descoberto, perna esquerda dobrada em arco por fora do lençol. Fumava compassadamente imprimindo ao cigarro um movimento pendular entre a boca e o cinzeiro depositado na perna por cima do lençol. «Ao menos podias escolher outra música – soltou desinteressadamente sem despregar os olhos da televisão».
- Porquê? Não gostas?
Ele prolongou o silêncio antes da resposta.
- Não é isso. Não gosto do som.
- Mas quê? Não gostas desta música?
- A música é-me indiferente. Irrita-me esse som.
O telemóvel apitou, acendendo-se a luz do visor no anúncio a uma nova mensagem. M espreitou na direcção do aparelho. Com um ar maçado, inclinou-se sobre a mesa-de-cabeceira, segurando o lençol sobre o peito com a mão esquerda e arrastando-o consigo. O homem percebeu o deslizamento do cinzeiro e agarrou-o antes de cair. «Hei! Cuidado! – protestou com vigor – Vê o que fazes…»
Ela ignorou-o no retorno à posição inicial com as costas coladas na almofada. «Ias fazendo cair isto tudo… – reclamava ainda – Se não fosse eu». Com o telemóvel levantado à altura do rosto, ela lançou-lhe um desinteressado olhar de relance, retomando a atenção ao aparelho. Leu: < Tem uma nova mensagem >. Conduziu-se à “Caixa de Entrada” e escolheu a opção “Ler”.
< Liga precisamos falar>.
M deixou cair a mão sobre a cama, junto à perna, e suspirou. Manteve-se estática por instantes, olhando em redor as paredes nuas de cor clara, e pensou que o quarto tinha falta de alguma cor e identidade. Talvez uns quadros ficassem bem. Distraidamente, puxou um cigarro de dentro do maço e pediu-lhe lume. O homem continuou sem despregar as pupilas da televisão. Num movimento desatento, acendeu-lhe o isqueiro em frente da cara. Ela inclinou-se para a chama, ateando o cigarro. Virou-se para ele e observou-lhe atentamente o peito peludo e os braços nus. Permanecia inerte, com o corpo descaído sobre o lado esquerdo e mantinha a perna de fora do lençol. A televisão projectava grupos de jovens de cores vivas e movimentos ritmados acompanhados de música pop.
«Importas-te de baixar o som da televisão? – questionou reticente – Preciso de fazer um telefonema.» Ele não lhe respondeu. Conduziu a mão ao telecomando e pressionou uma tecla. M escutou o som a ficar cada vez mais distante enquanto observava no ecrã a linha de rectângulos verdes em desaparecimento, ao lado de um triângulo da mesma cor. «Obrigado – disse, ao mesmo tempo que dava uma passa». Levantou-se da cama e dirigiu-se para um canto do quarto próximo da janela. Olhou para fora e franziu a testa perante a chuva oblíqua que o vento atirava contra as vidraças.
Seleccionou um número da lista telefónica e pressionou o botão de chamada. Com o telemóvel colado na orelha escutou o sinal, até ouvir uma voz do outro lado.
- Sim… Sou eu. O que é que se passa?
- Sim? O que é que achas? Claro que não pude. Não posso estar sempre ao lado do telemóvel à espera que telefones.
- Não sei se sabes, estou a trabalhar. Achas que não tenho nada para fazer?
- Sê razoável… Porta-te como um adulto.
- Diz-me o que é que se passa, que eu tenho de voltar lá para dentro. Estou numa reunião.
Aproximou-se da cama e fez-lhe sinal a pedir o cinzeiro. Ele passou-lho para a mão e ergueu-se mudo da cama. Ficou a ver-lhe o corpo nu rumar em passos sólidos para a casa de banho. «Não… Já te disse. Hoje não posso. Não sei a que horas saio». Ela deixou-se ficar. Girou sobre o joelho apoiado na borda da cama e acabou por se sentar.
- Não sei. Já te disse que não sei!
- Não posso ser sempre eu a fazer tudo. Não posso continuar assim! Não posso!
- Não sei… Já disse! Talvez por volta das sete e meia, oito… Depende das horas a que acabe a reunião. Depois, ainda tenho de tratar de uns documentos... Por isso, não sei…
Cobriu o bocal do telemóvel para esconder os sons que vinham da casa de banho. Quando ele reapareceu no quarto, fez-lhe sinais inquietos para fechar a porta. «Está bem… Já sei… Tens de passar por lá, no máximo às seis e meia».
Ele sentou-se ao lado dela, precipitando-lhe a saída. Ergueu-se de imediato, como se a cama fosse demasiado pequena para os dois, e ele acompanhou-lhe os movimentos do corpo nu em direcção à janela.
- Tá. Já sei. Não te esqueças.
- Tá. Até logo.
Deixou cair o braço ao longo do corpo nu, mal desligou. «Pfffffff – soprou longamente – Estou tão farta disto!» Desabafou, enquanto lançava a mão esquerda de encontro à cabeça, como se lhe doesse fortemente. Ele continuava a fitá-la. Acompanhou-lhe os passos até junto da mesa-de-cabeceira, onde despejou o telemóvel. «Preciso de um cigarro! Preciso mesmo de um cigarro. Desesperadamente… – deitou para trás a cabeça, prolongando os queixumes».
Lançou-se com os joelhos sobre a cama. «Arranja-me um cigarro! Depressa…» Os olhos dele prenderam-se nas curvas do corpo dela. Num gesto automático, procurou o maço ao lado da cama e puxou de dois cigarros e o isqueiro. Guardou um na mão e colocou o outro entre os lábios dela. Puxou do isqueiro e acendeu ambos. Ela deu uma baforada longa como se carecesse disso para sobreviver. «Estava mesmo a precisar disto.»
- Era o teu marido?
- O quê?
- Se era o teu marido?
- O que é que achas?
O homem não disse mais nada. Empunhou o comando na direcção do televisor, dando vida aos rectângulos verdes que logo recomeçaram a aparecer no ecrã. A música voltou a ouvir-se enquanto os jovens se agitavam. M não os escutava. Fumava ritmadamente, dando passas sucessivas sem interrupção. Suspirou longamente. «Há momentos em que não sei o que fazer – soltou – Estou tão cansada...» E aspirou o fumo com ansiedade.
Ele mirou-a de relance, de lado, sem mover a cabeça. «Se fosse comigo não te portavas assim.»
- O quê?
- Se fosse comigo não te portavas assim.
- Não chateies.
- A sério… Podes ter a certeza...
- Cala-te! Estás a enervar-me.
- Podes ter a certeza...
- Olha lá! Que moral é que tu tens para me estar a chatear? Estás aqui na cama comigo...
- Eu pelo menos não sou casado... – tinha uma expressão de gozo estampada no rosto.
Sentiu-se irritada. «Cala-te! Não me chateies!»
Viu-o rir-se e apagar o cigarro no cinzeiro sobre a mesa-de-cabeceira. Sentiu-se ainda mais irritada. «Vai-te foder!»
Ele voltou-se brusco para ela. Agarrou-lhe os pulsos com força. Ela foi incapaz de reagir. Sentiu-se doer. Ele torceu-a, obrigando-a a tombar e prendeu-lhe os dois braços de encontro à cama. Mordeu-lhe o pescoço. Sentia-lhe as curvas do corpo. A suavidade da pele. Sentia-lhe o perfume intenso.
«Sinto-me estúpida.» M estava caída de bruços na cama, rosto enterrado na almofada e as palavras soaram distantes, abafadas pelo tecido.
- O quê?
- Sinto-me estúpida…
- Vai tomar banho… Isso passa.
Ele fumava.
- Há momentos em que me sinto tão sozinha…
Olhou-a de relance e viu a massa de cabelos espalhados pela amofada. «Estás a desculpar-te por estar aqui comigo?»
- Não. Não me estou a desculpar de nada. Não preciso disso. Não preciso de desculpas. Estou a falar do que sinto…
- Tens um filho, um marido… Até tens um amante… Não sei do que te queixas...
M ergueu-se bruscamente sobre o cotovelo esquerdo. «Ah! Ah! Ah! – soltou irónica – Não gozes…»
- Não estou a gozar... – levou o cigarro à boca – Estava a falar muito a sério.
- Não acreditas que chego a casa e sinto-me só?
- Acredito...
- Apesar de tudo... Até mesmo apesar do meu filho... Tu sabes como eu gosto do meu filho!
- Às vezes não parece...
Atirou-lhe uma almofada irritada. «Cala-te! Não me chateies!» Ergueu-se da cama em direcção à casa de banho.
Ele gritou. «Não precisas de um homem!»
Recebeu de volta um grito dela. «O quê?» E viu-a reaparecer nua na porta da casa de banho.
- Estou a dizer que não precisas de um marido. Acho que nem mesmo precisas de um filho. Precisas de um Deus.
«O quê? O que é que estás para aí a dizer?» Voltou-se para dentro sem esperar a resposta, deixando-o ficar ainda sobre a cama, a fumar compassadamente e a ver televisão. Gritou mais uma vez. «Estava a dizer que não é uma questão de companhia. É uma questão de fé. A solidão faz parte da dimensão humana. Não a contrarias por estares com mais pessoas, mas sim por encontrares sentido...» Escutou-lhe a voz distante e abafada. «Não oiço nada!» Na televisão, continuava a sucessão de vídeoclips, a que assistiu impávido, acompanhado por cigarros.
Ela não demorou a regressar, enrolada numa toalha branca que logo deixou cair sobre a carpete. «O que é que estavas a dizer?»
- Nada...
- Pareceu-me ouvir qualquer coisa sobre as pessoas e solidão... e mais não sei quê...
- Não era nada...
Ficou a observá-la a vestir-se apressadamente. «Já é tão tarde!»
- Sempre gostei de ver mulheres a vestirem-se.
- Ai é? Que bom para ti...
- Sim... Mas deixa-me dizer-te que a tua pressa não te torna das mais interessantes...
- Obrigado! Eis o elogio que e estava a precisar antes de sair daqui.
- Não foi por mal...
M compôs as longas meias, puxando-as por debaixo da saia, e regressou para a frente do espelho da casa de banho, para retocar o batom. «Bem, tenho de ir... Estou super-atrasada...»
- Olha! Estou sem dinheiro...
Irritada, ela puxou a carteira de dentro da mala, abriu-a e atirou três notas para cima de cama.
À saída, fez a porta bater com força por detrás dela.
O ar frio de um fim de tarde de Novembro encontrou-a já com um comprido casaco de Inverno em cima do passeio molhado. Um frio cortante queimava-lhe a cara. Sentiu-se intimidada pela escuridão da noite. À distância, abriu o carro com o comando automático. Sentou-se e ligou o aquecimento. Estava gelada.
Ligou o motor depois de uma pausa prolongada e conduziu-se devagar por alamedas e ruas escuras e discretas. Os minutos passavam. Mas já estava a ficar habituada à temperatura tépida do interior do veículo.
Devolveu-se ao frio à porta de casa, depois de ter usado o batom. Compôs a roupa e vestiu o casaco comprido. Guiou os passos em direcção a casa. Girou duas vezes a chave na fechadura antes de a porta se abrir. Achou estranho que estivesse trancada. Pousou as chaves e a mala no móvel do hall e pendurou o casaco no cabide da entrada. «Querido! Já cheguei.» O aviso prolongou-se sem resposta no silêncio das paredes. Prosseguiu devagar até à luz acesa da sala. A televisão estava apagada. Percorreu as várias divisões sem encontrar eco dos seus avisos. Até que rumou ao seu próprio quarto. Abriu a porta e acendeu a luz distraidamente. Era impossível não reparar. Em cima da cama estava um balão verde cheio de ar. Sentou-se na beira do colchão e debruçou-se lentamente para ele, puxando-o até ela. Ficou assim. Sentada quieta a olhar para um ponto indefinido da parede, com o balão na mãos e apertado contra o peito.
 
J.P. Limão

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