Sexta-feira, 8 de Fevereiro de 2008
Terça-feira, quinto andar
Fevereiro 08, 2008
Um preto. Dois pretos. Invulgar e improvável. Depois, um verde, um vermelho e um branco. Um azul. Outro branco. Mais dois: vermelho e branco. Verde. Preto. Branco. Vermelho, de novo. «O próximo vai ser azul – dispara com convicção a menina de casaco de lã amarela.» A outra, de caracóis dourados, camisola vermelha e olhar circunspecto, mira-a com frieza. «Não vai nada! Vai ser branco.»
A chuva cai lá fora. Monótona e interruptamente, sem tréguas, sobre o cimento e alcatrão da rua. Dentro de casa, a tarde prolonga-se lenta numa macieza de gestos repetidos. As duas meninas trocam com mal disfarçado entusiasmo as suas apostas e depois esmagam os narizes de encontro aos vidros frios, que se embaciam com a respiração, na expectativa das respostas. Dentro da camisola vermelha, a menina de onze anos confia na sabedoria de ser a mais velha. Sabe que, aos dezoito, quer ser grande, bem sucedida e feliz. Ter um marido e dois filhos. A outra, a morena embrulhada no casaco amarelo, um ano mais nova, não sabe bem o que quer. Nunca pensou muito nisso e apenas deseja ter mais uma boneca nova, vestida de cor-de-rosa e com uma mala de mão, que viu na montra da loja de brinquedos. Atrás delas, um garoto de cinco anos, com madeixas claras e jardineiras azuis com um pato amarelo bordado na frente, só quer intrometer-se nas apostas. Mas é novo demais e as meninas, na sua sensatez de raparigas mais velhas, não o deixam participar. Por isso, fica a saltitar nas costas delas, avançando possibilidades que elas ignoram com coerência.
Passa um carro vermelho, cuidadoso na sua lentidão, acompanhado pelo ruído dos pneus no alcatrão molhado. A menina de amarelo solta um «Oh!» desiludido. «É vermelho!»
- Desta vez, ninguém ganha. Mas o próximo vai ser branco, de certeza...
- Não vai nada, vai ser verde! Vais ver...
Atrás delas, o rapazinho agarra a camisola encarnada. «Vai ser vermelho! Vai ser vermelho!»
- Cala-te! Tu não estás a jogar. Não chateies...
O rapaz faz um ar amuado e cruza os braços com força. «Mas porquê? Eu também quero jogar!»
«Já te disse que tu és novo demais. Nem consegues ver os carros e não percebes nada disto... – explica-lhe com impaciência fria a rapariga loura, antes de colar o rosto no vidro ao lado da amiga.»
A varanda, que estende uma estreita faixa de cimento à frente da vidraça, cobre quase integralmente o campo de visão das duas raparigas, deixando apenas observar uma reduzida nesga do início da rua no lado esquerdo. «Afasta-te. Estás à minha frente e não me deixas ver nada – diz a de vermelho, enquanto agarra o ombro da outra.»
- Se me afasto também não vejo nada...
- Então baixa-te! Se eu não vir o carro não vale.
Subserviente, a morena baixa-se um pouco, ficando as duas coladas ao vidro com atenção posta naquele início de rua. Um carro azul dobra a esquina devagar. «Bolas... É azul... Mais uma vez ninguém ganha.»
A menina loura suspira impaciente. «Então... Eu digo que é verde...»
- Branco!
- Estás a imitar-me! Eu tinha dito branco há bocado...
- E tu?! Eu também tinha dito verde! Tu é que roubaste a minha ideia...
- Não digas disparates... Eu disse primeiro...
Sentado no chão do quarto, atrás delas, o rapazinho agita em silêncio um super-herói voador pela alcatifa. Um carro branco espreita à esquina com as luzes acesas. «É branco! Ganhei! Ganhei outra vez! – grita a de amarelo.»
- Oh!
- Ganhei outra vez!
- Cala-te! Não faças tanto barulho, senão a avó vem aí outra vez...
«Ganhei outra vez! – exclama baixinho a morena com um sorriso de felicidade – Está sete a dois, para mim!»
«Não está nada! – responde a loura com vigor pouco contido.»
- Está sim!
- Não está nada! Está... Pelo menos sete a três... Eu ganhei há bocado, quando passou aquele carro azul grande!
- Não ganhaste nada! Tu tinhas dito verde, depois é que mudaste para azul... Assim não vale!
- Vale sim! A última é que conta!
- Tinhas dito que não...
- Mas isso era no início... Depois mudámos... Está sete a três!
- Ooohhh! És uma batoteira!
- Cala-te! Assim não prestamos atenção... O próximo vai ser branco...
«Amarelo – diz baixinho a morena amuada.»
- És mesmo parva! Quase não existem carros amarelos...
A outra olha-a sentida. «Mesmo assim estou a ganhar... Não sei quem é a parva...»
- É só sorte! Tens tido sorte! Porque as tuas apostas são estúpidas...
Escutam sem interesse uma voz fininha dizer «Vai ser vermelho!» Em silêncio, a morena embacia propositadamente o vidro com a respiração e desenha com o indicador um sete e um três. A loura olha-a com raiva, afasta-a e limpa os números com a manga vermelha. «Estás parva? Assim, não se vê nada!» A outra não responde. Comprime devagar o nariz arrebitado contra o vidro que está menos frio do que antes. A amiga imita-a e vêm surgir na esquina um automóvel vermelho. «Bolas... Vermelho!...» A palavra mágica desperta o rapazinho que se ergue subitamente do chão aos saltos. «É vermelho! É vermelho! Ganhei eu! – grita enquanto interpreta uma espécie de dança – Se me deixassem jogar, era eu que estava a ganhar!»
A morena ainda deita uma espreitadela tímida para trás. A loura não. Está séria e concentrada no desafio. «A partir de agora vamos ficar com as mesmas apostas. Não vale a pena estar sempre a mudar. Assim, é mais rápido... Tu tinhas dito amarelo e eu branco... Da próxima vez que passar um carro destas cores ganha a que disse a cor certa...»
A morena olha-a desconfiada. «Está bem... Mas eu quero mudar para verde...»
- Não! Agora já não se pode mudar!
- Mas eu quero... Há bocado tinhas dito que se podia...
- Mas isso era antes de começarmos com estas regras novas. Agora já não se pode. Se querias mudar tinha de ser antes...
- Mas eu não sabia... Foste tu que disseste que havia regras novas...
- Se não quiseres não jogas... Vais para a cozinha com a avó... É isso que queres? Não és obrigada a jogar!
A morena não responde. «Então? Queres jogar ou não?»
«Está bem... – reage, por fim, num fio de voz quase inaudível.»
As duas meninas colam-se ao vidro numa paciência tensa e silenciosa. Passa um automóvel vermelho. Um verde acompanhado por um suspiro de desalento. Outro verde. Um vermelho. Preto. Vermelho. De repente, um automóvel amarelo espreita à esquina. «Amarelo! – grita com entusiasmo a morena – Um amarelo! Ganhei! Ganhei outra vez! Está oito a três! Está oito a três! – e lança para fora uma língua húmida e zombeteira.»
A menina mais velha mira-a com frieza. «Não sejas infantil... – diz com desprezo.»
A outra agita os braços para cima e para baixo numa dança festiva. «Ga-nhei! Ga-nhei! Ga-nhei! Oito a três, para mim! – canta desafinada.»
- É só sorte...
- Ga-nhei!
- Bem... Cala-te e vamos jogar...
- Ga-nhei! Ga-nhei! Ga-nhei!
- O próximo é verde...
- Ga-nhei! Ga-nhei! Ga-nhei!
- És mesmo infantil! Joga e deixa-te de parvoíces...
- Hum... Azul! Ga-nhei! Ga-nhei! Ga-nhei!
A loura de vermelho esmaga o nariz no vidro com concentração. A outra, com um grande sorriso estampado no rosto encosta-se também na superfície lisa.
Passam mais carros e as apostas sucedem-se. A menina morena continua a ganhar. Acertou onze vezes enquanto a loura não conseguiu mais do que seis apostas certas. A chuva cai devagar, cada vez menos, ameaçando uma trégua que não tarda a chegar. «E se fossemos lá para fora? Já não está a chover... – propõe a menina loura.»
- Mas está frio...
- Não me digas que tens medo do frio?
- Não... Não é isso... A avó não vai gostar...
- A avó não precisa de saber... Pois não?
- Mas...
«Anda... Lá fora vê-se melhor – diz enquanto abre a porta de correr.»
O ar frio de Inverno irrompe pelo quarto, arrefecendo-lhes as bochechas. A loura exibe a segurança de menina mais velha, arriscando um primeiro passo nos mosaicos brancos e molhados para além da porta de vidro. «Não está nada frio! Está-se bem! Anda! – diz enquanto se envolve nos braços da camisola.» A morena segue-a com receio. «Brrrr.. Está mesmo frio...»
- Mas vê-se muito melhor...
A outra aproxima-se do varandim. O rapazinho espreita pela portada aberta e ameaça segui-las. A loura apercebe-se. «Tu não podes vir!»
- Porquê? Também quero ver...
- Tu és muito pequeno... ainda te constipas.
- Não constipo nada!
- Se te constipas, os pais e a avó vão ficar zangados...
«Se não me deixam ir, conto tudo à avó – arrisca com disfarçada ousadia»
A rapariga solta um suspiro aborrecido. «Se contas, levas... – ameaça com expressão decidida no olhar.»
«Conto, conto... – insiste o rapaz.»
- Deixa-o ficar... Se ele não vier para aqui, não há problema.
As meninas entreolham-se e a loura mira novamente o irmão. «Está bem! Podes ficar aí à porta. Mas não saias daí, senão sou eu que conto tudo à avó! Ouviste?»
«Está bem... – solta num sussurro.»
- Não ouvi bem...
- Está bem, está bem... Fico aqui...
Com as duas meninas colocadas junto ao varandim, o jogo prossegue acompanhado por uma atenção desmedida ao princípio da rua. Os automóveis sucedem-se. Passa um verde. Um azul. Outro azul. A menina de vermelho ganha. Depois, seguem-se verde, azul, preto, branco, branco, sem sucesso de nenhuma delas. O vermelho dá a vitória à morena. O azul garante um impasse que o preto desfaz com novo triunfo da menina de amarelo. «Quanto é que está? – pergunta, sem entusiasmo, a de vermelho.»
- Catorze a oito! Ganho eu!
- Já estou farta de jogar...
- Claro... Estás a perder...
- Não é isso... O jogo já não tem graça...
- Eu estou a gostar...
- Então fazemos uma última aposta... Quem acertar ganha o jogo!
- O quê?
- Quem acertar no próximo ganha todos! O que achas?
- Assim não vale! Eu ganhei muito mais do que tu! Assim, se acertares ganhas tudo e é injusto!
A loura fica impaciente. «Está bem... Tu ganhaste este... mas agora é um jogo novo. Quem acertar ganha e acabou-se. O que dizes?»
- Hummm... Não sei...«Não tens nada a perder! Já ganhaste este... E o próximo parte do zero. Ganha quem acertar! – explica com impaciência visível perante a desconfiança da outra.»
- Está bem...
- Ok! Então eu digo que é branco!
Ainda desconfiada, a menina do casaco amarelo hesita numa suposição. «Eu digo... que é... preto! – arrisca por fim.»
A outra observa-a com desprezo. «Está bem! Então... se passar um carro branco, ganho eu. Se passar um preto, ganhas tu... Combinado?»
- Combinado!
As duas apertam a mão com solenidade.
À esquina surge um carro vermelho. Outro vermelho. Seguem-se azul, verde, azul, cinzento... A impaciência acentua-se. «Pfff – solta a de amarelo – Nunca mais...» A outra morde um lábio com força e ignora-a em silêncio.
Espreita um carro azul. Verde, cinzento, vermelho. Novamente vermelho. Depois seguido por um verde. As meninas estão cada vez mais tensas. De repente, a esquina deixa perceber um novo automóvel a contorná-la. É preto. A menina morena dá um salto. «É preto! Ga-nhei! Ga-nhei! Ga-nhei! – grita efusivamente.» Faz de novo o agitar de braços festivo. «Ga-nhei! Ga-nhei! Ga-nhei!» A outra espreita-a pelo canto do olho com indisfarçável desprezo. A menina prossegue saltitante. «Ga-nhei! Ga-nhei! Ga-nhei! Ganhei outra vez!» Irritada, a outra não diz palavra. Não é preciso. Basta uma mão encostada nas costas com um pouco mais de força. Um empurrão que aproveita o desequilíbrio dos saltos da prima. Um gesto brusco. Depois, fecha os olhos com força, sem ver o amarelo que se afasta rapidamente na direcção da rua. Vira-se para o rapazinho atrás dela que a mira com uma expressão assustada. Ela avança para ele. «Anda, vamos para dentro.» Pálido e sem esboço de resposta, o rapazinho mete-se rapidamente dentro do quarto. A menina segue-o. Fecha a porta de vidro e baixa o estore. Olha para o menino e dá-lhe a mão. «Anda, vamos lanchar.» Ele agarra-lhe na mão. «E a Clara? – pergunta num sussurro tímido.»
- A Clara não quer lanchar.
Em baixo, no asfalto da rua, uma mancha vermelha interrompe a circulação lenta dos automóveis de várias cores. Um preto. Dois pretos. Invulgar e improvável. Depois, um verde, um vermelho e um branco. Um azul. Outro branco. Mais dois: vermelho e branco. Verde. Preto. Branco. Vermelho, de novo.


J.P. Limão
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publicado por Instantes Decisivos | link do post | comentar

1 comentário:
De Dulce a 7 de Abril de 2008 às 23:41
Fabuloso este conto à Ian McEwan. Tem ritmo, tem sempre “suspense”, é aparentemente inócuo, as personagens são somente descritas pela acção (além das cores); o leitor anseia pela brecha que levará à perversidade e o NARRADOR não lha dá, vai-lha retendo; e o que está magnífico é que mantém o leitor na verosimilhança daquela brincadeira de criança que todos fizemos e que é assim, lenta, monótona, excitante às vezes (e nós à espera de onde venha a PUNHALADA, tendo quase receio que seja por trás de nós). Nós naquele ambiente pueril e quotidiano – quanto muito à espera de um elemento exógeno, exterior, - e a mestria do Narrador apresenta-a do interior, como que das vísceras (dentro da casa e do ser humano ainda um ente em formação) é que surge a resolução /desenlace do conflito criado ao longo do conto. Parabéns, JPLimão.
Dulce


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